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terça-feira, 1 de maio de 2012

NA CARNE


     E não era ninguém quando morri. Apenas o espaço vazio da porta e a dor na barriga. E já os olhos me iam com imagens de indefinição.
     Um rosto estranho. Pálido. E um estampido a me arder a carne. Segundos. E só eram os pés dele que via.
     Sapatos de brilho singular. Minha cara de espanto, distorcida no verniz dos pés dele. Meu olho que se alarmava à proximidade do cano que descia até minha testa. E então o nada.
     Mas por segundos...
    
     Ele não sabe. Nem imagina. Mas estou nele. No seu passo firme e convencido. Agarrado em sua carne. Mesmo que quisesse não conseguiria.
     Ele é saboroso em sua maldade incondicional. Alimento pra minha fome etérea e eterna.
     Exala confiança enquanto pelas brechas e poros da sua carne, invado sua sanidade.
     Acha que não sente nada. Pensa que me esquecerá em segundos. Mas meus dentes devoram seu cérebro e suas memórias.
     Acredita que no bar, encoberto pela fumaça e álcool  se livrará do meu corpo a mastigar-lhe.
     Belo em sua boca o álcool que escorre. Etílico elemento. Vejo seu coração. Pulsando... pulsando.
     Um carro estaciona e somos levados. O homem gordo cara fechada pergunta “deu tudo certo?” “Sim.” É a resposta. Então um envelope é trocado de mão. Dinheiro que recende a sexo e drogas. Os bolsos estão cheios. O carro nos larga e a algumas quadras meu assassino entra no ônibus e senta para morrer.
     Não há inferno nem demônio. Há apenas a fome. Todos têm fome. Tudo tem fome.
     A humanidade é um termo... conceito muito limitado. Dirão que não sou humano. Que sou um demônio. Não sei. Sei apenas que este coração tem o gosto de toda minha fome. Todo o meu desejo.
     Provavelmente ele sentirá dor. Abrirá a boca em grito mudo, mãos no peito. Falta de ar... O corpo debatendo-se no chão.
     Na minha boca, escorrendo, o suco amargo e delicioso de todas as mortes.

PERIGO





O sol estava como se não estivesse. Sombrio o dia. Espaços delimitados de calor e luz. Fracos. Débeis. A cor era o cinza. Assim como o espírito. Cinza.
E caminhava por aqueles dias mortos. Passos arrastados. Olhos cinzas. Quarenta e sete anos cinzas. A tentativa do sorriso foi um fiasco. Não sabia rir. Nem mesmo com sarcasmo. O sorriso fora impugnado, interditado. Definitivamente não sorria. Caminhava. A barba espessa sufocando. Vegetação selvagem. O animal ressurgindo. A razão indo. Só a sobrevivência. O comer de cada dia. O respirar. O peso do lixo. Caixas e caixas de papelão. Montanha arrastada pelas ruas da cidade. Tartaruga humana. Dores que se ramificavam por todo o corpo. Músculos. Mãos calosas. Homem-cavalo, cavalo-homem. Arrastava e era arrastado pelas ruas. Baleia e Lambaria eram os amigos. Cães. Os humanos não. Não gostava dos humanos. Eram maus. Todos. Os cães não. Esses eram amigos. Baleia veio do livro. Do texto encontrado no lixo. De um tal de Fabiano de um tal de Graciliano. Sempre lia os livros que encontrava. Livros em pedaços, molhados. Novos também. Muitos. Não entendia muito. Mas gostava. Não era burro. Sabia ler. E ali encontrou a Baleia. Lambari veio depois. Ambos pretos. Baleia grande e brava, Lambari pequeno e barulhento. Baleia no chão, ao lado. Quieta. Lambari na carroça. Preguiçoso. Provocador. Ele gostava.
Divida a comida encontrada. Comia pouco. Na verdade nem tinha fome. Comia por uma necessidade do corpo, de um roncar de estômago que lhe avisa. Nômade. Decidira que não moraria jamais em uma casa. E morava na rua. Encostava a carroça em um beco. Fazia uma pequeno fogo. Cozinhava o que podia em uma panela que trazia amarrada na carroça e pronto. Mas antes tinha. Tinha uma casa sim. Pequena. Mas era dele. E tinha uma mulher. Dona Enilda. Um dia Enilda disse que era pra ele ir embora que não lhe tinha mais amor. Ele argumentou que talvez fosse melhor ficarem juntos. As coisas estavam difíceis. E então ela disse que tinha outro. Que ele ia morar com ela. Que ela queria. E como tinha um guri que ficaria com ela, nada mais justo que ele fosse embora. Nem chorou. Nem se desesperou. Quando foi embora arrastando a carroça vazia, ela fechou a porta. Tinha acabado tudo. Tudo. Morava num bairro onde a pobreza e a promiscuidade eram o chão onde todos pisavam. O papelão vendia. Para O João Maneta. Homem baixo e gordo. Desdentado. O Maneta comprava tudo. Gostava dele. Dava conselho. Emprestava uns trocados. Atirava uns pãos pra Baleia e pro Lambari. Ele gostava.
Mas não dormia no centro. Nunca. Gente má. Gurizada do diabo. Conhecia uns que tinham sido queimados. Outros espancados. A policia ria. Fazia cara de preocupação quando os jornalistas chegavam. Mas riam muito e faziam piada quando iam embora. Não. Ele saia da cidade. Do centro. A partir das cinco horas da tarde ele começava a sair. Só parava quando o lugar era mais calmo. Tranqüilo. Descampado.  Preferia os bichos. Cobra, aranha, escorpião. Tubo bicho melhor que o homem.
Foi em uma destas vez que encontrou ele. Braços abertos. Boca aberta. Peito aberto. De bala grande. Buracão no corpo. Morte. Bem vestido. Cheiro de gente importante. Primeiro foi o susto do corpo em braços de abraço de morte que pretendia dar. Recuou. Pensou em correr. Baleia e Lambari cheiravam. Farejavam. “Sai, sai.” Ralhara com os amigos. Em pés curtos de relutação, aproximou-se do morto. Carteira. Dinheiro. Relógio. Nada. Não tinha nada. Era como se o enorme buraco no peito tivesse consumido tudo. Resolveu afastar. Separar seu corpo morto daquele outro. Mas Lambari entrou em um pequeno matagal. Farejando. Logo Baleia sumiu atrás. Ele resolveu ir junto. E foi então que encontrou. Guardou no meio de um papelão que dizia perigo. Amarrou com barbante e guardou bem no fundo na carroça. E tremeu. E fugiu. Medo. Do morto e da polícia. Da polícia e de quem matara o outro. O morto.
A vida era estranha. E disso ele sabia. A sua nem vida era. Espécie de resistência. Permanência. Impertinência. Mas e daí. Não se lamuriava. Era mais um bicho que gente. E sabia disso. E gostava.
Quando a lua abriu o olho e o viu lá embaixo. Baleia e Lambari correram. correram muito. Na frente. Ele parou. Medo? Dobraram uma esquina e latiram. Latiram mais forte. Baleia rosnou. Latiu. Ganiu. Lambari alucinado latia. Ele agarrou firme os braços da charrete e puxou com força todo o seu precioso lixo. Parou. Estancou. Baleia estava estirada no chão. Lambari furioso latia para três homens. Uma mulher estava caída. Atrás dos homens. “Vai andando mendigo!”  gritou uma voz que veio de um rosto que não se via. Baleia gemia.
A mulher gemia. “Vai indo ou a gente te queima!” e riram. E foi neste momento que ele pensou que realmente as coisas eram engraçadas. E que a vida é muito estranha. Não estava nem com raiva, nem furioso. Mas ia fazer aquilo. Era como se tudo já estivesse predestinado. “Sai fora imundo!” O brilho de uma faca cintilou. E o que falava deu dois passos para frente. Foi ai que ele enfiou a mão no meio dos papelões e pegou o pacote. Perigo. Rápido puxou o grande revólver. Negro e poderoso. A bala foi cuspida com raiva. Diferente do que sentia. A arma tinha seus próprios interesses. Seu próprio sentimento. E um grande buraco abriu-se no peito do primeiro. Medo. Os outros dois tentaram fugir. O segundo tropeçou na mulher. Caiu. Ao levantar-se recebeu o projétil na nuca. Sangue. O outro tentou argumentar. Abanava as mãos. Fazia cara de coitado. Pensou em não matar. Mas Baleia gemeu. A mulher. Encolhida. Gemeu. Puxou o gatilho. Apanhou a cadela e a colocou da carroça. A mulher o olhava. Ele olhou fundo nos olhos da mulher. Colocou a arma dentro do papelão, amarrou novamente e largou ao lado da mulher. “Perigo”.

A velha


Todo cão é um bicho. O homem. Bicho também. Pensou a velha. Sentada na cadeira. Rosto na janela. Moldura antiga. Vetusta imagem do tempo gravada. Nas rugas que percorriam todas as carnes que compunham o rosto da velha.  A televisão era a janela. Sempre a janela. E o fora do mundo. O seu.

A rua e sua oferta. Pobre a rua. Mas proposta. Que recusara há muito. A janela bastava. E os olhos iam longe. O que não viam criavam. Poderosos olhos de inventar verdades. Que seriam ou não.  Virtualidade latente. A semente e a árvore. A árvore em estado de vontade de ser.
Velha. Lhe chamavam carinhosamente. E sorria sempre. Dentes desgastados mas ainda presentes em sorriso espirituoso e distante. Os parentes eram memória. O marido ausência. A morte era uma coisa interessante. Pensava. No início magoava, doía. Depois afagava, acarinhava... não sabia se queria. Estava em dúvida.
Decisão difícil. Viajar para o distante... sorriu. A janela como moldura. Da rua os olhos outros sempre viam o mesmo quadro. Até a noite. No escuro. Não saia da janela. O sono não existia, parecia morte, e ela não tinha decidido.
E era com ela. Ninguém interferiria. Ela tinha o poder. Na aparente fragilidade,  uma força latente pulsava, e era nos olhos grandes e claros que se mostrava. Olhos de ver tudo. Olhos de devorar tudo. Nem a noite escondia dela seus segredos. E da janela ela via. Sem medo. Via as angústias de todos, os medos. Via os fantasmas e segredos que escapavam dos sonhos e dos tormentos noturnos. Também as fantasias e os terrores, desejos... e nem ruborizava, acostumada com as coisas humanas dos homens.
Criaturas estranhas

Palavras sopradas




Colocou os óculos. Imagem ampliada. Consciência? Sorria diante da folha virtual. O mundo era virtual. Mas era real também. Realidade em devir. E o sorriso era algo por aí. Misto de chegar e não. Coisa que não se decide em ironia ou dor.  Indecisão. Cisão. E começou.
Escrever. A música alta no pátio procurava caminhos outros. A atenção se esvaindo em nota e letras. Engenheiros. Engenharia. Tudo era engenharia. Pensou.
Concentração. Havia uma necessidade de desligar-se. Precisava articular o texto, a idéia. Articulação. Mas havia uma impossibilidade de determinar o assunto, o tema. Era sobre o escrever?
Era sobre o escrever? Sobre isso. A ação de engendrar letras, palavras, frases, idéias, textos? Era isso. Um sofrimento. Uma alegria.
O sol era um convite. Rua. Vida. Mas a página também era vida. Sua. E as letras também. Coisa de arrepiar. Nômade perambulando em vasto deserto. Erguendo acampamentos moventes em espaços de dimensões perturbadoras?
Sim. Era isso. Avizinhar-se desta condição. Nômade. O deserto era a folha. Lisa. Espaço liso. Criar um mundo. Mesmo que fosse fugaz . Mas um mundo. Não uma fuga. Não uma desculpa. Mas uma luta. Uma guerra. Sim. Tinha que ser isso.
Uma guerra silenciosa. Dobrar e desdobrar os sentidos todos, resistir nas e pelas letras, nas folhas. Brancas como Moby Dick. Assustadoras. Buscar o não-senso do comum. Questão ética. Estética. Algo do gênero.
Fome. Consumir. Então o chimarrão quente. Líquido. A liquidez das coisas. As cheias. Zigmunt. O arrastar. Derretimento. O mundo escorre. E o tempo corre. E corremos nele. Todos. Acabar. Destruir as estruturas da tradição? E depois? Mais estruturas novas e mais sólidas. Sentido? Filosofia pela manhã é mortal! No sábado. Deus! Sinal de problemas, delírio. Loucura?
Brinde então a Artaud. O ácool logo vem. Noite. E as letras se acalmam. E a folha dorme. Branca e ameaçadora. Ilusão... as palavras surgem como exército furioso, desordenado, cuspindo incoerências, mágoas, ironias... teorias alcoolizadas. Palavras-sopro.
Ousar enfrentar a adiposidade estrutural da língua com a agramaticalide do delírio. Então o fim. Com Bartleby "prefiro não".

A bruxa




E ela levantaria os olhos para o céu. E a reza estaria neles – claros grandes, brilhantes... esperançosos – antes das palavras-resmundos-lamúrias que diria. Mãos vazias para o alto.
Dona Nandinha era uma bruxa. Pelo menos para mim. Guri que fui. E que na sua presença aprendi o mundo que via, lia e dizia.
Mas era uma daquelas bruxas boa de abraçar. Na flacidez dos anos e da pele fria. Estranha para mim. Guri de sete anos e com o calor todo do corpo nas pernas que corriam ruas inteiras. Hoje memória e história.
Vizinha da minha mãe. Mais velha que todos. Antes do médico era ela que corria para as casas-chá-efusões-xarope-rezas-beijos carinhosos nas crianças-histórias fantásticas anteriores a qualquer memória.
Pequena. Gordinha. Cabelo crespo. Olhos redondos. Voz grave e forte. Firmeza nas mãos e nas pequenas pernas que se recusavam a temer ou respeitar a imposição do tempo.
Uns diziam curandeira, parteira outros. Rezadeira, mais alguns. Mas de profissão costurava. Com linha construía. Edificava, reformulava a vida de todos que a circundavam.
Remendava e reconstituía os pedaços de todos nós. Cortava o que não prestava, cerzia nossas feridas, remendava com cores alegres nossas dores.
Pela manhã. Cedo. Fazia o mate. Quente como o fogo e ligava o pequeno rádio. Baixinho cochichava no ouvido da nossa bruxinha as novidades do mundo e seus perigos. E ela levantava os braços e olhos para o céu e rezava. Segurava com suas rezas o mundo todo e todo o seu peso. E era feliz.
E era forte a Dona Nandinha. A casa era repleta de bis quis, vasos de flores e incensos. Retratos pelas paredes em molduras antigas. Guardanapo bordado na mesa da cozinha e no tampo do fogão. A leitura
Tinha um gato que não era dela. Dizia. Mas comia e dormia na casa. Godot era o nome. Ela lia. E fazia ler. Às vezes nos pegava na rua e nos tomava a leitura: Moby Dick, As viagens de Gulliver, Sítio do Pica-Pau, contos de fadas, as Mil e uma noites...
Na época era um suplício, mas lembro que depois – na rua – nos gabávamos para os amigos: “Tive que ler dez páginas do livro tal... e o outro retrucava cheio de segurança e superioridade: Pois faltam dez páginas para eu ler o livro todo!”
Era uma bruxa sim. E vivíamos envoltos em magia.
Um dia Dona Nandinha morreu. Venderam a casa, os livros e o gato fugiu. Fugiu para minha casa. Envelheceu lá. Eu com ele. Hoje é lembrança. Memória mágica.
Ligo o rádio. Os olhos para o céu. Profundo céu de possibilidades. Estou constrangido... mas levanto as mãos. Busco um pensamento que se avizinhe de Deus. Faço uma reza resgatada dos confins da minha infância.
Sorrio. A vida é boa. Uma nuvem sorri para mim. Tem a cara da Dona Nandinha.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

DE COMO SE DESTRÓI UMA ESTRUTURA OU... ALICE DE PEDRA NA MÃO






Cabelos loiros e de nome Alice. Baixinha e simpática. Sorriso de contar histórias. Fadas e essas coisas. Bela. Sorridente. O pai largou a mão. Mãozinha açucarada da fazer carinho e apontar pequenas e fúteis necessidades. Agachou-se a menina. A pedra chamava. Redonda e pesada. Na palma cabia, se aconchegava. Pedra e mão. Mão e pedra. E o pai distante. Negócios, contas e mulheres, pois era desses que o corpo ardia por qualquer mulher. Fraco. Da carne. Enquanto o corpo permanecia na tolerância e na possibilidade de um provável "bom-comportamento", os olhos e a mente se esbaldavam na luxúria que só a imaginação é capaz. Mas ela era forte. Ela e a pedra. E do outro lado a vidraça e ela e o pai e a pedra. E o mundo que passava atrás, no meio e na frente. Quebrou.

Foi. Pelo ar. E com um "ufa!". Sim, com ponto de exclamativo esforço de menina que arremessa pedra e violência. Desabou a vidraça. Nua a janela e a possibilidade dos traspassamentos. E o pai abriu a boca em espanto que de dentro advém. Espanto. Boquiaberta a janela pelada em vidro que não mais é. Atravessamento. A menina sorri. Sorriso de boca que não se abre em dentes brancos, mas que pelos olhos. Olhos que sorriem o não saber o que se faz. Mas que é bom. Fazer. Em seguida todos os verbos e discursos estariam em combate. Palavras emaranhadas em ríspidas acusações e encabuladas desculpas. Discurso que se desprende, afasta a menina e a outra pedra. As ruas não deveriam ter pedras para as meninas de sorrisos nos olhos. Esta possuía. Possuía todos os desejos selvagens das meninas de cinco anos.

E agora foi o carro. Alvejado. Fera abatida, assustado gemendo, bufando fumaça e impropérios. Mais gente, mais verbos, exclamações que cravavam na sensatez de qualquer decisão. Aturdido, ofendido, humilhado. O pai apanhou outra pedra, grande. Paralelepípedo. Quadrado. Ao ar e aos gritos. Vôo. Cubo voador. Nave espacial, peso puxado. Torpedo que se volta. Revolta. O povo se afasta. E o carro azul parado na rua recebe nas costas o peso. A pedra. E grita. E o povo grita; êxtase.

A menina já está com outra pedra, e as vidraças vão caindo. Logo um senhor velho, carcomido pelo tempo para em frente à menina. Olhos severos. Ela sorri e apanha a pedra que ele oferece. É a destruição.

As pessoas enlouquecidas arrancam as pedras da rua e jogam nas casas, nas lojas nos carros. A polícia chega e é apedrejada. Os políticos chegam e são apedrejados. E abandonam seus postos cargos e carros e apedrejam. Todos de pedras na mão. Mas não há sangue, não há mortes. As pedras procuram o que não é vida. E as mulheres choram e os homens choram. E quebram tudo. E a epidemia toma conta do universo. Pelas ruas, pelas cidades, pelos estados, pelos países. As cidades morrem na estrutura. Na forma e conteúdo.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Conflitos - sem verbos

Ronie Von Martins


Dois. Homens. Um. Barba grande, rosto vermelho. Nariz também. Olhos brilhantes. O outro magro. Rosto comprido e pelado. Pouco cabelo. Dentes trincados. No ar as ofensas. Um olho dentro do outro. Cruzamentos de ódio. Movimentos ao redor. Estudo do corpo. Dança. O momento do soco. A mão. Punho serrado e duro. O lábio em explosão. Sangue. Gotas na camiseta. Na boca. Novamente o punho. Baixo. A barriga. Um urro. O salto e o abraço. No chão os corpos. Rolo compressor de carne. Braços e pernas sem corpo. Invenção do movimento na fúria.

Na rua a observação silenciosa do cão. O cheiro do sangue nas narinas, a tensão da luta no movimento arisco do animal. O espectador.

As palavras terríveis. Projéteis mortais. Cusparradas de verbo. Setas envenenadas. E o joelho em movimento simétrico. E o queixo. E a dor. E a tontura. A barba e o sangue. A cabeçada. Os dentes fora da boca. Mais sangue. Mais dor.

O animal e sua distância. O tombo. O chute. O pé no ar. A luz e a escuridão. A luz...a escuridão. O corpo. O giro para a esquerda. A perna presa, o outro tombo. Mais socos.
Já não um rosto. Só a dor e carne. Em exposição. A vergonha. O insulto. A honra.

O cansaço e sua soberaria. O ofegar além do corpo. O tropeçar em si mesmo. A oscilação da perna. O outro. O corpo em teimosia. Erguido. Braços para a luta. Punhos cerrados. Meio termo? Não.

Primeiro o grito, depois a mulher. Lágrimas abundantes. O afogar do arrependimento e da vergonha. O descuido. A mão feroz no rosto, o murro animalesco. A agressão final.
O abandono do corpo. O silêncio. O surdo som do corpo em último tombo. A distância do outro. Passos... tempo. O corpo e a ausência. A rua.

Os beijos carinhosos. Os sussurros e lamúrias. Desculpas imploradas, corpo embalado. Canção de amor. Palavras afogadas na dor.

Uma sirene e a ambulância. Curiosos. Perguntas. Motivos. Explicações.

Amores, traições, vingança, dívidas, bebida, jogo...

Só a rua agora... E o cão.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

lobo

LOBO
Ronie Von Rosa Martins


Todas as prisões são o corpo. A limitação do corpo. O espaço delimitado do corpo. A carne o osso e o passo tímido da perna exata.
A prisão é a cama a peça e a casa. A cerca e o espaço que te traça.
Nos livros as traças. Letras e mais letras, palavras, verbos, versos, universos. Mesmo assim preso. Mesmo assim refém das limitações da carne sua.
Sobre a mesa o espesso volume. Moby Dick. Ahab. O oceano.
Civilizado. Docilizado. Afrouxou a gravata. Forca estética de várias cores e tecidos.
O respirar do corpo além do nó.
O copo de uísque pela metade. Dois icebergs flutuando. O degelo. O gelo.
Rasgam o tédio, a moral, as normas, as ordens. O real.
Um sorriso se desenha em lábios que não sorriem. Mais. O álcool é o segredo para o outro mundo. Dimensão outra. Imensidão.
O corpo aperta uma tecla e Nei Lisboa canta só para ele : “Seremos sempre assim, sempre que precisar. Seremos sempre quem teve coragem. De errar pelo caminho e de encontrar saída. No céu do labirinto que é pensar a vida. E que sempre vai passar por aí”

Pensar a vida. Errar pelo caminho...
Os passos levam o corpo à janela. O vidro proíbe o ar. A visão é através, filtrada, controlada. Os olhos da casa. Não olham para fora; mas para dentro.
Há ninguém. Todos que não estão. Memórias. Imagens. Rostos. Ações. Tudo perdido nos jorros de tempo de Cronos.

Civilização. Ao final do braço a mão e seus dedos. Unhas aparadas e polidas. Mão enfraquecida. Braço cansado. Os pés cobertos por objetos de couro. Lustrosos e macios. O pé?
Sentado desamarra o sapato. A meia escura. Agora a visão do pé. Todos os dedos. Sorri. Não é sempre que observa o próprio pé. Meche os dedos. Boa sensação. Um pé esbranquiçado, sem vida. Sem cor. Ao lado o sapato observa, guarda, vigia. Pronto para enclausurar novamente. Proteger, cuidar, colocar o pé ao lado de tantos outros. Calçados.

Eles voam. Primeiro um. Depois o esquerdo. Na rua já escura estatelam-se. Srão os pés de um mendigo qualquer. Um homem que mendiga passos certos e exatos.

A casa está surpresa. Em silêncio. Presente algo. As paredes vibram silenciosas. Portas e janelas estão anciosas e asustadas. Então a casa oferece o quarto, cama grande e macia, ar condicionado, televisão; seduzir. É o que o carcereiro pensa. Seduzir o homem. Não? Ainda não? A cozinha. Geladeira repleta; queijo fatiado, presunto, galinha, yogurtes, cremes, doces, bebidas... não?

A água lava o corpo em rios. Rios que escorrem pela carne. Pelo rosto. Não? São lágrimas? Salgadas?

Nu. Assopra as luzes. A escuridão. Do outro lado a noite. A casa já não tem poderes. As paredes são apenas ilusões. As narinas buscam todos os odores. Todos os cheiros que se mesclam confundem. Os olhos dilatam-se. Buscando nas distãncias aquilo que não se vê. A casa não é mais nada.

E a noite clama. A noite chama. E então é ela. Só. Redonda. Brilhante. Ele pensa na vida. Pensa nos sapatos. Nas portas. Nas roupas. Nas palavras doces, nas regras, nos detalhes... pensa nas filas, no cheiro de fumaça... e vomita. Vomita sua civilidade. Pela garganta. Pedaços de uma vida em pedaços.

E ele urra. E uiva. E salta. A fúria é o caminho. O desatino. E atravessa o vidro que corta. E o sangue que escorre. O cheiro, o gosto da vida.

Do outro lado da casa a noite o apara, o acolhe. E ele corre. Pernas que não são as mesmas. Coração outro. Força que invade cada célula, cada molécula.
Selvagem. Entre os carros. As pontes. Os homens. O medo, o susto. O pânico.
Fera. Suor. Escorrendo abundante, expurgando todos os medos, todos os anseios. Musculatura que salta sobre cercas. Se lança sobre árvores, arbustos. Prazer animal. A terra no pé, o vento pelas narinas, os olhos engolindo tudo, devorando toda uma vida que passa. O campo. As árvores. A mata. O uivo. O grito. A fúria se espandindo sonoramente como uma onda que vai arrasando tudo e todos. Depois o silêncio. Depois os comentários. Depois a versão oficial, depois a mentira. Depois o exagero, depois a lenda. Depois o tempo. Depois as calçadas. Depois os prédios. Depois o aço e o vidro, depois... depois ...

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

NO ESPELHO

NO ESPELHO

Um sorriso que não era; abriu-se triste em rosto indefinido.
Reflexo, imagem, espectro.
O sorriso já não era. Distante até mesmo do seu sarcasmo.
Só o desenho de sua carne refletida em olhos, boca, cabelo e dúvidas.
Imagem. Interpretação.
A mão procura a boca, e no espelho não há textura, espessura, tato.
Lentamente ergue o braço. Ela conseguiu. Fizera o que ninguém mais fizera.
A mão treme. O braço pesa.
No aço do espelho observa o espaço que a resumiu. A redução do corpo. Alguns livros; linhas de fuga, frestas e buracos na estrutura quase hermética do lugar; cadeiras, mesas, quadros – mais linhas de fugas – cada olho, cada rosto remetia a um outro que não ela, deslocamentos possíveis – exercícios necessários...
Ereta confrontando e confrontada por si mesma... e todas as outras que sabia que era, o olho traçava linhas invisíveis que a costurava magicamente ao seu outro. Ao ser outro.
Frente a frente os “eus” de cada uma se observavam. A concretude de uma e a efemeridade da outra... a realidade das duas. Multiplicidades.
A imobilidade de ambas. Metamorfose, simbiose da carne e do reflexo. Da criatura e do criador. Da luz e da sombra. Quem seria a sombra?
Ela conseguiu. Era o que o cérebro aquém do espelho pensava. Possibilidade.
No rosto as rugas em seus entrecruzamentos matemáticos prometiam números elevados. Os cabelos de um preto falecido lembravam infâncias distantes, sonhos...
Pensou na morte do reflexo. De tudo que era reflexo...
Gostaria de tomar um chá. Sentar à mesa de Hatta e Haigha em março e enlouquecer tentando descobrir porque um corvo se parece com uma escrivaninha.
Do outro lado a que não era sorri, grande sorriso único, solitário, zombeteiro sorriso de Cheshire: “Se não sabes para onde vais, qualquer caminho te levará lá”.
Lembrou da menina.
Onde andava Alice?


Ronie Von Rosa Martins

Texto também publicado na minha coluna no "ENTREMENTES - Revista digital de Cultura."

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

PEDRO

Ronie Von Rosa Martins

Entre as mãos, pressionado pela estrutura física da carne, do osso que sustenta, mas também oprime por também ser obstáculo, peso, parede. Pulsava(?) prisioneiro do próprio corpo engendrado para si. O cérebro.
Nas mãos encharcadas, embebidas no suor das têmporas-nectar das dúvidas e angústias, ele sentia, percebia a aflição de seu intelecto comprimido...
Paredes... tudo eram paredes. Da carne ao tijolo. Tudo que prendia e resumia. Reduzia. Tudo eram paredes. Suas paredes.
Na escuridão circunstancial do não olhar, ele percebia os vultos negros das nuanças da própria sombra que o envolvia e invadia. Possuído pelo demônio da dependência, filho maldito do torpor... atrelado estava à rima simplória, mas vital, da batida cardíaca.
Talvez se abrisse os olhos e enfrentasse além do seu rosto/máscara de carne velha e dissimulada –sua essência, sentido/alma que de tão profunda jamais conhecera. Talvez na pele? Capacidade de se compreender?
Mas o cérebro. Abraçado ao frágil coração gritava-lhe do cárcere onde se encontrava que compreender a si mesmo era coisa de coragem, de desprendimento. E eles eram fracos, débeis na sua condição retórica. Voláteis.
E a umidade das mãos agora ficava mais amarga, pois o fel de sua alma deslisava silenciosamente por sua pele.
Quanto tempo fazia? Quarenta voltas os ponteiros indiferentes da morte já haviam dado ao redor de sua cabeça?
Sair. Levantar.
Tentava sem sucesso tais ordem ao prisioneiro conformado que se distanciava em uma valsa insensata de antigas e novas imagens-reais-ilusórias, de frases ditas e outras nunca mencionadas. Não havia resgate para o encarcerado que se implodia em incoerências. A razão é coerente?
Entre os dedos da mão escorria sua sanidade, fluindo para o esgoto/desgosto? Toda sua capacidade de percepção. Fronteiras ruíam.
E as dias mão que seguravam, agora chacavam-se débeis, delirantes. Surdo aplauso seco. Único. Ploft.
E ser já não era, agora, o que se fora outrora.
Então abriu os olhos. No aço do espelho seus olhos do outro o fitaram. De quem eram aqueles olhos cravados na sua carne. Aquela carne moldada em seu idêntico rosto?
De quem era o organismo tecido em seu espelho?
O que era aquele corpo que na realidade do espelho, na “verdade” do reflexo se escrevia, se inscrevia em seu texto. sem nome e em desalinho?
Na antítese que se instaurava se criara; e na mesma intensidade em que em volume, massa e peso se gerava, também pelo olho - no aço que o encarava – tão simples fácil se rendia. No leito estranho do desespero se permitia outro sono de falácias. Sonhos?
Do outro lado da porta. Sons.
Porta? Lado?
Espalmada a mão na parede fria. Realidade instaurada na solidez do prédio.
A mesma parede que esmaga também protege. O espelho sorriu. A carne ficou indiferente, intacta na ruptura interna da estrutura que se partia.
Qual porta estava fechada? a porta da lúcida madeira? Que se abria de súbito unindo dimensões fantásticas de todos os desatinos.
Estava nu. Desprovido dos panos. Encobrir as vergonhas. Nesta constatação eventual a carne se abriu em gargalhada infindável entre o espaço do aço do espelho e o reflexo da corpo. Carne entre o corpo de espelho e o reflexo do corpo.
Silêncio!
Sérios se olharam – decrépitos ambos.
No ar do olho que se encherga dentro do seu mesmo olho, cicatriza o distante; mesmo que no próximo olho que se vê diante, já se perca no profundo espaço do que já fora antes.
No piscar de ambos que se defrontam o que se alcança são só molduras...
Casado. Não está preso. Casado. Aliança no dedo. Dinheiro eroupa não.
Onde a sombra que se pretende homem? Na escuridão deste apodrecer?
Corpo ereto. Alto. Esguio, curvo. Respira a densidade negra que o emoldura. Pretende um grito. Forte, sacro/santo, mas e voz de onde?
Cadê palavras nessa boca murcha que se costura. Onde atitude nessa massa pálida que se constitui?
Onde a sintaxe da texitura deste verbo que não se estrutura. Dessa frase que não se coaduna. Cadê a palavra que neste deserto subserviente se abandona?
Noolho do teu olho no reflexo do teu despojo, no cérebro preso ao osso que o protege; congelas num segundo o tempo que te engendra; do materno exílio ao parto onde te encontras. Olho no olho no olho do teu próprio olho... Infindavelmente. Nesse espelho que não existe. Deste quarto que não desistes. Neste berro que ecoa.
A mão cansada que no movimento se afoga na densa massa que te engole – escuro – onde tudo se confunde. Vago fundo do teu quarto nu. A chave solta pende morta no fio que a conduz a luz.
E no passo que teu peso grita noutro espaço teu corpo afunda. No além da porta-luz.
Luz que te agride o corpo que reduz.
Pardais cinzentos em bandos te observam através do vidro da parede. No muro que individualiza, singulariza os espaços do mesmo. Delimitam os passos de cada um.
Abertos os vidros que iludem com as imagens das coisas. Respiras a terra.
Tudo é terra.
Vestindo as roupas, vestia também seu nome. Novamente recriado a personagem para o dia. Pedro. Pedra que se submete ao formão e ao martelo do escultor. Ao martelo.
A cada amanhecer recriava-se novamente a entidade Pedro. Vestido como Pedro. Pensando como Pedro, agindo como Pedro. Falando. Só lhe era permitido ser o não-pedro à noite e só. Quando despia-se do rótulo que o algemava ao ícone Pedro. Mas nem isso entendia.
Pedro Salinas. Pedra de sal. Desmanchava na singularidade coletiva de todos. Que também se resumiam.
Em um passo de tempo em que sua forma, imagem e sombra traça, mente, cérebro se afastam. Foge, mas em vão não encontra alma alguma. Corpo e carne e osso que sustenta o vulto já bastam, fartam... então parte.
Mesmo sendo pedra consegue ser mais ausência.
Massa de anti-matéria que perambula pelo universo. De qualquer folha o verso. Não o que canta a dor e a idolatra, mas sim as costas. O resto de qualquer escritura. Sepultura?

Findo o trabalho. Traz sua bunda magra e ossuda para o assento gasto da poltrona que lhe abraça. Engole e consome.
Click. E faz-se a luz. De volta.
O calo.
Não fala.
Nada diz.
Calado retira o sapato.
Na térmica ainda água.
O mate?
Morto. Todos os sonhos.
Sorve toda a amargura.
O calo lateja em sua profunda e singular sintonia.
Retira a meia. Entre o dedinho e o outro. Sem emoção. Com as unhas...
Arrancado, desmembrado o inimigo. Tinge o dedo o sangue, também o pé e o chão.
Vai chover?
Quanto mesmo? Quarenta?
Levanta-se.
É preciso fazer alguma coisa.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

O GUARDA-CHUVA

O guarda-chuva
Ronie Von Martins

Contam os mais antigos - normalmente cercados pelos olhos arregalados das crianças da família e com certeza diante da lareira nos dias frios e chuvosos do inverno - a história do tal guarda-chuva.
Era noite, na rua somente o silêncio e o medo. E ele, o homem. Grande capote preto. A garoa molhava seu rosto lentamente. Pois dizem que este homem, que voltava pra casa... E aqui não contam o que fazia fora de casa; perdido na chuva, trilhava pelas ruas da então jovem cidade de Pedro Osório, mais especificamente na Rua das Flores.
O cérebro conjeturando sobre os afazeres da vida e os prazeres e dissabores da existência. Sombra fraca e trêmula presa aos pés, pouca iluminação na rua.
Nesta época contam que a escuridão era soberana. E o medo também.
Pois bem, foi neste dia que ele voltava pra casa, mãos no bolso e cabeça nas nuvens, que tudo aconteceu. E depois dele, muitos outros também viram. E o que aqui conto é o relato que venho ouvindo de geração em geração nas rodas de conversa da minha família.
Sozinho com seus problemas, absorto em seus pensamentos, ele não percebeu o outro. Não tinha visto nem de onde e nem quando. Só sabia que ali estava.
Homem acostumado a não se assustar por pouca coisa - “matou” um arrepio que lhe subia pelas costas no peito e seguiu.
O outro homem portava um enorme guarda-chuva negro, grande morcego que se movimentava de acordo com o movimento dos passos da pessoa que o retinha.
E um frio antes não percebido começou a se fazer presente. Um frio que começava a invadir os ossos dele; acreditava ser a chuva. Estava molhado e um início de resfriado se insinuava... Febre?
Já caminhara – pelos seus cálculos – muitos metros, mas mesmo assim não chegava nunca em sua casa. O guarda-chuva sempre na frente. Silêncio mortal. Pesado. Nem os cães nem os gatos davam discurso na noite. Só os passos. Os passos dele.
Ficou intrigado. Estavam próximos, mas só ouvia os seus passos, não conseguia ouvir os passos do outro homem.
Tentou ver os pés. Mas a escuridão não permitia silhuetas, só a imaginação delimitava formas.
O coração dele começou a bater mais forte, e algo começou a zombar de sua coragem bem lá dentro do seu peito.
Neste momento já estava empapado de água da chuva, resolveu tirar tudo a limpo e enfrentar o homem que caminhava rapidamente a sua frente. Correu até ele e estancou na sua frente.
O mundo parou. Os relógios trancaram no horário que ali afirmava aquele bizarro encontro.
Sob o guarda chuva não havia ninguém, apenas a escuridão da noite. A parte mais escura, o espaço de todos os medos, o vazio de todos os silêncios e o silêncio de todos os gritos.
Medo. Dúvida. Temor. A rua de repente tornou-se negra como o breu, todas as luzes se apagaram e ele foi tragado pelo desespero.
Com dificuldade conseguiu afastar-se, e tropeçando e chocando-se pelas paredes das casas se pôs a correr o mais rápido que podia. Só que o guarda-chuva, inspirado pelo seu pavor, também lhe perseguia, em silêncio.
Corrida silenciosa e ofegante pelas Rua das Flores. Chegou em casa pálido como a morte. A mulher não conseguia entender nada. Nem ele.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

NA RUA

NA RUA

Ronie Martins

Um carro.Mais. Outro carro. Tantos. Pessoas várias. Uma. Duas. Todas. Rua. Uma e muitas. Intersecção. Curvas. Becos. Olhos. Dois. Diversos. Um silêncio; não. O som. O barulho, o ruído. Burburinho. Passos, pássaros? Improvável. Tolerável o contato. Corpo. Corpos. Desvios, choques. Odores. Suores. Braços. Movimentos... segmentos. Movimento e pausa. Continuidade. Continuação. O contínuo da ação. A palavra. Na boca. Na placa. No rádio. O discurso. A intenção. A sujeição. A imposição. O vidro e o cimento. Túmulo? Da donzela? Do conto das antigas fadas? Vitrine. Desejo e consumação. Angústia. Inveja. Prazer e frustração. Cansaços em degrade. Desilusão em várias nuance. Velocidade. Objetivo. Chegar. Ir e chegar... se der voltar... Voltar da rua. Dos caminhos tantos que não são nossos e também o são. O cão que perambula. O olfato atento. O homem, o flato nauseabundo. O odor do corpo e da rua. O corpo da rua e seu odor. A dor da rua e sua náusea. O cão. Pela mão a menina. Preso o corpo. A imaginação flutuante. Devora vitrines. Brinquedos e roupas, doces e salgados. Sonhos. Os sonhos da rua devoram-nos. Todos. Caminhar. Uma perna após a outra. Mover todas as instancias da carne. Produzir o movimento... Ir... Vir... Na rua que se perde sob os pés e cabeças e corpos e odores e presentes e dívidas e sorrisos e tristezas o pássaro voa. Distante. Há silêncio nas alturas de sua rua? Vastos e escassas carnes desfilam seus panos. Coloridos e estigmatizados com suas grifes. Estimativas de um valor hipotético. Virtual? Ondulantes carnes se oferecem, outras agridem, afrontam, zombam. Outras, sentadas em propícios ambientes, devoram cadáveres alegremente e bebem água, refrigerantes, café, cerveja e cachaça. Sóbrios começam a caminhada, alguns corpos... ébrios e tontos chegam... ou nunca. A rua é língua. Lascívia. Um olho que passa encontra outro e se encontram os corpos e se aproximam as vidas e se edificam histórias e memórias e famílias e lendas e mais corpos... para a rua. Entro no ônibus e fecho os olhos. Vou.

ESPREITA

ESPREITA

Ronie Von Martins





O cigarro já começava a esquentar seus dedos. Gostaria de se incendiar literalmente e acabar com aquilo de uma vez por todas. Esperar. Observar. Conhecer. Já estava cansado. Sua vida nada mais era que pedaços de tantas vidas que observara. Sempre à espreita. Sugando a vida alheia. Os detalhes, a sordidez, as pequenas alegrias, as dores. A traição. Todos traíam. De uma forma ou de outra a raça humana era traidora. E pagavam para ele observar e contar. Relatar os fatos.

Noite. Sentado ao volante do carro lançou a bagana do cigarro pela janela. O pequeno bólido incandescente traçou uma curva no ar e morreu no chão cuspindo algumas fagulhas do antigo brilho. Morte.

Todos queriam ter certeza. Interiormente já a tinham. Todos que o contratavam sabiam. Mas precisavam de provas. “Traga-me a certeza!” então ele saia para as noites. Farejando as humanas falhas, os deslizes, as fraquezas.

Encheu o copo da térmica de café. Bebeu um grande gole. Muito doce. Mas gostava. Gostava das coisas doces...

De dentro da escuridão e do silêncio da rua, o cachorro aproximou-se e urinou na roda do carro. Ele sorriu. Gostaria de ser um cachorro e urinar em alguém. Mostrar que não estava nem aí para nada, recusar um trabalho... mijar no pé de um idiota qualquer.

De súbito voltou suas atenções para a casa. Movimento. Levemente a porta abriu-se, uma sombra masculina parecia beijar um vulto que não saia à porta. Sem o acender das luzes ganhou a rua. Mãos no bolso, cabeça baixa.

Era ele sim. Já tinha fotos e gravações suficientes para comprovar. A mulher estava “frita”.

O marido viajando à negócios e ela ali, aproveitando a vida com o advogado da família.

Tentou sentir alguma coisa em relação ao fato. Nada. Raiva: o homem trabalhando e a vagabunda fazendo aquilo... Nada. Não conseguia sentir nada. O marido podia ser um crápula, podia bater na mulher, e esses escapes eram a única forma dela “viver”... Nada. Não conseguia se envolver mais. A vida dos outros começava a acabar para ele. Já não havia nenhum prazer.

Estava morrendo. Se vivia através dos pequenos estratos de vida dos outros, então agora estava morto.

Apanhou a foto da mulher de dentro de um envelope. Mulher bonita, uns trinta e sete anos, olhos tristes e boca sensual. Lembrou do rosto do marido. Homem sisudo e arrogante. Acostumado a mandar. Sobrancelhas espessas e sorriso debochado. Apanhou a foto do advogado. Rapaz jovem e alegre, um olhar que denotava algo de presunçoso... Levantou o rosto para o espelho do carro. Olhou-se. Nada.



No outro dia o marido recebeu um envelope. Um cheiro estranho exalava de dentro. Abriu o envelope enojado e sufocado pelo cheiro. Puxou de dentro algumas fotos e documentos avariados, todos manchados e molhados. Nada podia ser lido ou visto. “Mas o que é isto?” Pensou. Apanhou o telefone. Discou o número que sabia de cor. “O que é isso?” “Nada.” Foi a resposta do outro lado da linha. “Estou saindo.”

“Seu filho da P...” O cheiro começava a empestear a sala. “Que cheiro horrível é esse?”

“Mijo.”

domingo, 29 de novembro de 2009

PEDRO

Ronie Von Rosa Martins

Entre as mãos, pressionado pela estrutura física da carne, do osso que sustenta, mas também oprime por também ser obstáculo, peso, parede. Pulsava(?) prisioneiro do próprio corpo engendrado para si. O cérebro.
Nas mãos encharcadas, embebidas no suor das têmporas-nectar das dúvidas e angústias, ele sentia, percebia a aflição de seu intelecto comprimido...
Paredes... tudo eram paredes. Da carne ao tijolo. Tudo que prendia e resumia. Reduzia. Tudo eram paredes. Suas paredes.
Na escuridão circunstancial do não olhar, ele percebia os vultos negros das nuanças da própria sombra que o envolvia e invadia. Possuído pelo demônio da dependência, filho maldito do torpor... atrelado estava à rima simplória, mas vital, da batida cardíaca.
Talvez se abrisse os olhos e enfrentasse além do seu rosto/máscara de carne velha e dissimulada –sua essência, sentido/alma que de tão profunda jamais conhecera. Talvez na pele? Capacidade de se compreender?
Mas o cérebro. Abraçado ao frágil coração gritava-lhe do cárcere onde se encontrava que compreender a si mesmo era coisa de coragem, de desprendimento. E eles eram fracos, débeis na sua condição retórica. Voláteis.
E a umidade das mãos agora ficava mais amarga, pois o fel de sua alma deslisava silenciosamente por sua pele.
Quanto tempo fazia? Quarenta voltas os ponteiros indiferentes da morte já haviam dado ao redor de sua cabeça?
Sair. Levantar.
Tentava sem sucesso tais ordem ao prisioneiro conformado que se distanciava em uma valsa insensata de antigas e novas imagens-reais-ilusórias, de frases ditas e outras nunca mencionadas. Não havia resgate para o encarcerado que se implodia em incoerências. A razão é coerente?
Entre os dedos da mão escorria sua sanidade, fluindo para o esgoto/desgosto? Toda sua capacidade de percepção. Fronteiras ruíam.
E as dias mão que seguravam, agora chacavam-se débeis, delirantes. Surdo aplauso seco. Único. Ploft.
E ser já não era, agora, o que se fora outrora.
Então abriu os olhos. No aço do espelho seus olhos do outro o fitaram. De quem eram aqueles olhos cravados na sua carne. Aquela carne moldada em seu idêntico rosto?
De quem era o organismo tecido em seu espelho?
O que era aquele corpo que na realidade do espelho, na “verdade” do reflexo se escrevia, se inscrevia em seu texto. sem nome e em desalinho?
Na antítese que se instaurava se criara; e na mesma intensidade em que em volume, massa e peso se gerava, também pelo olho - no aço que o encarava – tão simples fácil se rendia. No leito estranho do desespero se permitia outro sono de falácias. Sonhos?
Do outro lado da porta. Sons.
Porta? Lado?
Espalmada a mão na parede fria. Realidade instaurada na solidez do prédio.
A mesma parede que esmaga também protege. O espelho sorriu. A carne ficou indiferente, intacta na ruptura interna da estrutura que se partia.
Qual porta estava fechada? a porta da lúcida madeira? Que se abria de súbito unindo dimensões fantásticas de todos os desatinos.
Estava nu. Desprovido dos panos. Encobrir as vergonhas. Nesta constatação eventual a carne se abriu em gargalhada infindável entre o espaço do aço do espelho e o reflexo da corpo. Carne entre o corpo de espelho e o reflexo do corpo.
Silêncio!
Sérios se olharam – decrépitos ambos.
No ar do olho que se encherga dentro do seu mesmo olho, cicatriza o distante; mesmo que no próximo olho que se vê diante, já se perca no profundo espaço do que já fora antes.
No piscar de ambos que se defrontam o que se alcança são só molduras...
Casado. Não está preso. Casado. Aliança no dedo. Dinheiro eroupa não.
Onde a sombra que se pretende homem? Na escuridão deste apodrecer?
Corpo ereto. Alto. Esguio, curvo. Respira a densidade negra que o emoldura. Pretende um grito. Forte, sacro/santo, mas e voz de onde?
Cadê palavras nessa boca murcha que se costura. Onde atitude nessa massa pálida que se constitui?
Onde a sintaxe da texitura deste verbo que não se estrutura. Dessa frase que não se coaduna. Cadê a palavra que neste deserto subserviente se abandona?
Noolho do teu olho no reflexo do teu despojo, no cérebro preso ao osso que o protege; congelas num segundo o tempo que te engendra; do materno exílio ao parto onde te encontras. Olho no olho no olho do teu próprio olho... Infindavelmente. Nesse espelho que não existe. Deste quarto que não desistes. Neste berro que ecoa.
A mão cansada que no movimento se afoga na densa massa que te engole – escuro – onde tudo se confunde. Vago fundo do teu quarto nu. A chave solta pende morta no fio que a conduz a luz.
E no passo que teu peso grita noutro espaço teu corpo afunda. No além da porta-luz.
Luz que te agride o corpo que reduz.
Pardais cinzentos em bandos te observam através do vidro da parede. No muro que individualiza, singulariza os espaços do mesmo. Delimitam os passos de cada um.
Abertos os vidros que iludem com as imagens das coisas. Respiras a terra.
Tudo é terra.
Vestindo as roupas, vestia também seu nome. Novamente recriado a personagem para o dia. Pedro. Pedra que se submete ao formão e ao martelo do escultor. Ao martelo.
A cada amanhecer recriava-se novamente a entidade Pedro. Vestido como Pedro. Pensando como Pedro, agindo como Pedro. Falando. Só lhe era permitido ser o não-pedro à noite e só. Quando despia-se do rótulo que o algemava ao ícone Pedro. Mas nem isso entendia.
Pedro Salinas. Pedra de sal. Desmanchava na singularidade coletiva de todos. Que também se resumiam.
Em um passo de tempo em que sua forma, imagem e sombra traça, mente, cérebro se afastam. Foge, mas em vão não encontra alma alguma. Corpo e carne e osso que sustenta o vulto já bastam, fartam... então parte.
Mesmo sendo pedra consegue ser mais ausência.
Massa de anti-matéria que perambula pelo universo. De qualquer folha o verso. Não o que canta a dor e a idolatra, mas sim as costas. O resto de qualquer escritura. Sepultura?

Findo o trabalho. Traz sua bunda magra e ossuda para o assento gasto da poltrona que lhe abraça. Engole e consome.
Click. E faz-se a luz. De volta.
O calo.
Não fala.
Nada diz.
Calado retira o sapato.
Na térmica ainda água.
O mate?
Morto. Todos os sonhos.
Sorve toda a amargura.
O calo lateja em sua profunda e singular sintonia.
Retira a meia. Entre o dedinho e o outro. Sem emoção. Com as unhas...
Arrancado, desmembrado o inimigo. Tinge o dedo o sangue, também o pé e o chão.
Vai chover?
Quanto mesmo? Quarenta?
Levanta-se.
É preciso fazer alguma coisa.

ESPREITA

O cigarro já começava a esquentar seus dedos. Gostaria de se incendiar literalmente e acabar com aquilo de uma vez por todas. Esperar. Observar. Conhecer. Já estava cansado. Sua vida nada mais era que pedaços de tantas vidas que observara. Sempre à espreita. Sugando a vida alheia. Os detalhes, a sordidez, as pequenas alegrias, as dores. A traição. Todos traíam. De uma forma ou de outra a raça humana era traidora. E pagavam para ele observar e contar. Relatar os fatos.
Noite. Sentado ao volante do carro lançou a bagana do cigarro pela janela. O pequeno bólido incandescente traçou uma curva no ar e morreu no chão cuspindo algumas fagulhas do antigo brilho. Morte.
Todos queriam ter certeza. Interiormente já a tinham. Todos que o contratavam sabiam. Mas precisavam de provas. “Traga-me a certeza!” então ele saia para as noites. Farejando as humanas falhas, os deslizes, as fraquezas.
Encheu o copo da térmica de café. Bebeu um grande gole. Muito doce. Mas gostava. Gostava das coisas doces...
De dentro da escuridão e do silêncio da rua, o cachorro aproximou-se e urinou na roda do carro. Ele sorriu. Gostaria de ser um cachorro e urinar em alguém. Mostrar que não estava nem aí para nada, recusar um trabalho... mijar no pé de um idiota qualquer.
De súbito voltou suas atenções para a casa. Movimento. Levemente a porta abriu-se, uma sombra masculina parecia beijar um vulto que não saia à porta. Sem o acender das luzes ganhou a rua. Mãos no bolso, cabeça baixa.
Era ele sim. Já tinha fotos e gravações suficientes para comprovar. A mulher estava “frita”.
O marido viajando à negócios e ela ali, aproveitando a vida com o advogado da família.
Tentou sentir alguma coisa em relação ao fato. Nada. Raiva: o homem trabalhando e a vagabunda fazendo aquilo... Nada. Não conseguia sentir nada. O marido podia ser um crápula, podia bater na mulher, e esses escapes era a única forma dela “viver”... Nada. Não conseguia se envolver mais. A vida dos outros começava a acabar para ele. Já não havia nenhum prazer.
Estava morrendo. Se vivia através dos pequenos estratos de vida dos outros, então agora estava morto.
Apanhou a foto da mulher de dentro de um envelope. Mulher bonita, uns trinta e sete anos, olhos tristes e boca sensual. Lembrou do rosto do marido. Homem sisudo e arrogante. Acostumado a mandar. Sobrancelhas espessas e sorriso debochado. Apanhou a foto do advogado. Rapaz jovem e alegre, um olhar que denotava algo de presunçoso... Levantou o rosto para o espelho do carro. Olhou-se. Nada.

No outro dia o marido recebeu um envelope estranho. Um cheiro estranho exalava de dentro. Abriu o envelope enojado e sufocado pelo cheiro. Puxou de dentro algumas fotos e documentos avariados, todos manchados e molhados. Nada podia ser lido ou visto. “Mas o que é isto?” Pensou. Apanhou o telefone. Discou o número que sabia de cor. “O que é isso?” “Nada.” Foi a resposta do outro lado da linha. “Estou saindo.”
“Seu filho da P...” O cheiro começava a empestear a sala. “Que cheiro horrível é esse?”
“Mijo.”

Ronie Von Rosa Martins

MOBY

Abriu um olho-claridade, brilho, luz-piscou uma, duas-três, várias vezes ligou e desligou o mundo. O outro.
Aberta as janelas, fronteiras entre o sono e o despertar, talvez entre a morte e a vida, pensou... (ultimamente pensava demais.)
Precisava levantar- “levanta filho da puta, levanta vagabundo.” – ouvia os quase inaudíveis insultos que o cérebro – entidade funcionário público – gritava. O corpanzil velho gordo e suado lascivamente afundado qual Titanic ou Pequod em um mar de cobertas também velhas e também suadas.
Girou os olhos pelo quarto, como fazia sempre; examinava o local-cela-quarto-prisão... grades?
No chão entreaberto... Moby Dick – sonhara estar preso no mortal arpão de Ahab;
Baleia, Moby como era chamado – a baleia era branca; ele era a própria noite. ...o zunido... Sempre o zunido daquela miserável... Um dia a pegaria.
Barulho lá fora. Valia a pena sair? Na superfície o Pequod o espreitava. Sentia o seu suor, seu odor de negro fujão; de escravo. “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”, quis cuspir no chão. Achou melhor não. Dane-se o Pessoa. Tão louco que seu duplo era dobrado. Louco de merda. “Pelo menos eu sei quem sou, sei o que faço: Eu sou........... faço.........”
Bobagens. A sombra do Pequod estava quase sobre ele. Piscou os olhos. Mergulhar mais fundo. O mar era seu território, seu universo.
A mulher gritava para que não esquecesse a chave... “A chave! A chave!” e ele em desespero se apalpava. Bolsos do casaco, da camisa, da calça... “A chave! A chave!” “Levante, levante” implorava o cérebro; mas o corpanzil sorria constrangido na sua incapacidade de produzir ação. “Desculpe... respondiam todos os músculos, todos os nervos-neurônios–veias tudo. Todo o organismo em sussurro, depois lamentos depois em berros gritavam-berravam-ganiam-gemiam-murmuravam.
Procurou pelo quarto – sempre o silêncio, abraço profundo; forte e sufocante como o da mãe “Não vá se sujar meu filho... não vá se sujar meu filho...” o perfume adocicado e enjoativo lhe invadindo as narinas e nauseando-o. A tentativa desesperada de fugir dos tentáculos maternos... “Não vá se sujar meu filho...”
Fuga!
Rua!
Corria livre o sorriso fácil riscado na face gordinha e rosada. “Brincar, brincar, brincar” lhe ordenava a alma infantil, e era a mesma alminha que se encolhia tal qual o corpo, assustado e humilhado quando os meninos da vizinhança o colocavam na roda e o chamavam de baleia, “Moby Dick!”, Moby Dick!”
Chorar?
Não. Quando o pai lhe encontrava chorando batia com violência no seu rosto “Home não chora bundão! Home não chora!” E ele, a baleia, engolia as golfadas de lágrimas em proporções desumanas.
Na escola era o centro das atenções; as meninas riam e chamavam-no de Bolo fofo, A baleia sempre fugindo das ameaças. Fundo mergulhava.
E o pai?
Ausência presente. Presente indiferença. Vazio. Poltrona vazia, garrafa vazia. Uma lembrança... Vaga lembrança...
A mãe?
O abraço tentacular tão indiferente quanto à indiferença paterna “não vá se sujar meu filho, não vá.....”
O arpão rasgando o mar. As lágrimas, as lembranças... Ahab. Vários Ahabs insanos em seu encalço.
Afundar...afundar. Cada vez mais afundar.
A mãe-perfume
Perfume-amante.
Chances de amor?
Sim, tivera a chance de ser normal. ( O que é ser normal?) Ela até que gostava do cetáceo, mas não tinha condições de suportar a pilhéria da marujada: “Não dá mais Moby, não dá mais.” “Por que fulana... por quê?
Por quê?
O coro da turba surgia em uníssono vociferando: “Gordo, Gordo!”
Nos ouvidos as mãos, tampões exatos na exatidão da dor.
Chorar?
Não, Moby jamais chorava – o pai não deixava – Moby só mergulhava. Sempre o mergulho. Fugia incessante do arpão, para o arpão...
Ar...
Pra que serve o ar se há a imensa e delirante dor; pra que ar se o arpão da infelicidade lhe atravessa as costas numa gargalhada horrenda.
A cama-mar- acamar- acalmar...
Dor!Dor!Dor!
Ardor e febre. Suor. O corpo se despede enorme. Abandono. Imensa nódoa escarlate que tinge a água e sufoca até Ahab.
Os olhos – longe a baleia, na superfície arrasta para o inferno o navio, a fúria e a intolerância.
Então chegaram calmos, quase sorriam – os carcereiros-enfermeiros-amigos-sombras-marujos...sonhos.
“O gordo foi pro saco.”
“É”
“Pois é.”
O cérebro ativa a última luz...
“Suicídio?”
“Desde que nasceu.” Sorriu o outro.
“É.”
Parados e abertos os olhos. A visão.
Ahab. Dentes arreganhados, toda a tripulação, todos os meninos, a mãe, o pai, a amante – o arpão.
O corpo. Corpanzil de graxa, baleia imensa negra-branco cetáceo. Morte.
Morte?
Sim, por que não, só mais um grande mergulho...
“Ta morto mesmo?”
“Não sei...”
O salto. O berro!
Joga-se! A gordura imensa o peso intenso sobre os olhos claros os olhos parvos, o pânico definido pela indefinível morte.
Sufocados-esmagados-triturados...
Apagada a fornalha fecha-se o livro os olhos fecham.
Mais um mergulho.
Encontrariam no outro dia dois enfermeiros esmagados pelo paciente do quarto 56.
A vida... e a morte também podem ser ridículas.
Não havia nenhum Ismael para escapar ao naufrágio.

Ronie Von Rosa Martins

O SOFÁ

Já não abraçava ninguém. Talvez o tempo. Sim. Com certeza o tempo agora lhe abraçava. Forte. Tão forte que sentia as estruturas do seu corpo fraquejar. Mas não reclamava. Sua resposta era sua insistência. Inquebrantável insistência. Resistir.
Nas espirais em que o tempo fazia suas memórias girarem, algumas lembranças se desgarravam e saltavam na parede. Imagens trans-temporais. Presente e passado, mesclados de forma indefinida.
Dos sonhos. Dos sonos confortáveis. Em que os corpos buscavam os aconchegos de seus sussurros mágicos, de suas cantigas irreais que levava-os para muito além do corpo. Era poderoso e venerado. E tinha seu império na parte mais nobre do reino. E seu poder era ilimitado.
Sobre as disputas de poder. Nos problemas mais graves, os corpos se jogavam para trás, afundavam-se no seu mundo. E com as palavras indizíveis, sussurrava respostas, propunha acordos, fazia rir. Era.
Braços fortes, suportava todos os pesos, todos os tamanhos, todas as alegrias e dores. E era mágico. Sim. Era mágico. Pois fazia as janelas abrirem ou fecharem, acendia quase sempre um portal vibrante e sonoro que hipnotizava todos. E sorria. Era ele.
Mas não há perenidade. Ilusão do eterno.
Primeiro, em decorrência de tratados políticos, condições econômicas e estéticas, fora obrigado, para sua própria segurança a habitar outros espaços. Não era de todo ruim. Agora recebia e tinha de dar palpites em relacionamentos juvenis. Aparar lágrimas infantes perdidas em delírios amorosos. Consolar a imaturidade e acalentar estranhos animais coloridos de pelúcia. Também de bom grado, recolhia todas as roupas e todos os livros. Montanha de coisas caóticas. Mas era forte. E sustentava ainda sorrindo todo o caos daquele estranho ambiente. Nas madrugadas, observando os corpos dormirem, abria sobre seu corpo algum livro ali deixado. Alice no país das maravilhas, o Pequeno Príncipe. Revistas de moda? Signo? Gibi. As vezes ainda ouvia, lá de onde aprendera a estar, os murmúrios do outro. Mais jovem e arrogante que agora dominava. E no sem palavras de seu diálogo, dizia para ser mais generoso menos orgulhoso. A juventude traz na força toda a sua consciência...
Então aconteceu. Enquanto os corpos se ausentavam. O portal luminoso, revoltado com sua subserviência, em ígneo discurso, ateou luz causticante ao lugar. E das distâncias da dor todos podiam assistir a consumação da matéria em brilho e calor intenso.
Quando tudo acabou. Só ele ainda resistia. Corpo ardido, pele em estado deplorável, chamuscado, sujo, mas vivo. Era mágico.
Vários corpos vieram e entre gritos, lágrimas e esforço. Água e suor... restou ele.
Todos foram.
Era a única casa da rua. Hoje é apenas um labirinto de paredes caídas e destruídas.
Porém ele é mágico. E para aqueles que acreditam em mágica e tiverem coragem suficiente. Entrem naquela rua, depois das dez horas da noite, nas pegadas do silêncio, andem até ele. E o verão, em pedaços sim, mas forte o suficiente para acalentar o sono do pequeno menino e seu cão pulguento. Aproximem-se e ouvirão no ar uma voz que é além da voz sussurar: “Era uma vez...”

Ronie Von Rosa Martins