domingo, 29 de novembro de 2009

PEDRO

Ronie Von Rosa Martins

Entre as mãos, pressionado pela estrutura física da carne, do osso que sustenta, mas também oprime por também ser obstáculo, peso, parede. Pulsava(?) prisioneiro do próprio corpo engendrado para si. O cérebro.
Nas mãos encharcadas, embebidas no suor das têmporas-nectar das dúvidas e angústias, ele sentia, percebia a aflição de seu intelecto comprimido...
Paredes... tudo eram paredes. Da carne ao tijolo. Tudo que prendia e resumia. Reduzia. Tudo eram paredes. Suas paredes.
Na escuridão circunstancial do não olhar, ele percebia os vultos negros das nuanças da própria sombra que o envolvia e invadia. Possuído pelo demônio da dependência, filho maldito do torpor... atrelado estava à rima simplória, mas vital, da batida cardíaca.
Talvez se abrisse os olhos e enfrentasse além do seu rosto/máscara de carne velha e dissimulada –sua essência, sentido/alma que de tão profunda jamais conhecera. Talvez na pele? Capacidade de se compreender?
Mas o cérebro. Abraçado ao frágil coração gritava-lhe do cárcere onde se encontrava que compreender a si mesmo era coisa de coragem, de desprendimento. E eles eram fracos, débeis na sua condição retórica. Voláteis.
E a umidade das mãos agora ficava mais amarga, pois o fel de sua alma deslisava silenciosamente por sua pele.
Quanto tempo fazia? Quarenta voltas os ponteiros indiferentes da morte já haviam dado ao redor de sua cabeça?
Sair. Levantar.
Tentava sem sucesso tais ordem ao prisioneiro conformado que se distanciava em uma valsa insensata de antigas e novas imagens-reais-ilusórias, de frases ditas e outras nunca mencionadas. Não havia resgate para o encarcerado que se implodia em incoerências. A razão é coerente?
Entre os dedos da mão escorria sua sanidade, fluindo para o esgoto/desgosto? Toda sua capacidade de percepção. Fronteiras ruíam.
E as dias mão que seguravam, agora chacavam-se débeis, delirantes. Surdo aplauso seco. Único. Ploft.
E ser já não era, agora, o que se fora outrora.
Então abriu os olhos. No aço do espelho seus olhos do outro o fitaram. De quem eram aqueles olhos cravados na sua carne. Aquela carne moldada em seu idêntico rosto?
De quem era o organismo tecido em seu espelho?
O que era aquele corpo que na realidade do espelho, na “verdade” do reflexo se escrevia, se inscrevia em seu texto. sem nome e em desalinho?
Na antítese que se instaurava se criara; e na mesma intensidade em que em volume, massa e peso se gerava, também pelo olho - no aço que o encarava – tão simples fácil se rendia. No leito estranho do desespero se permitia outro sono de falácias. Sonhos?
Do outro lado da porta. Sons.
Porta? Lado?
Espalmada a mão na parede fria. Realidade instaurada na solidez do prédio.
A mesma parede que esmaga também protege. O espelho sorriu. A carne ficou indiferente, intacta na ruptura interna da estrutura que se partia.
Qual porta estava fechada? a porta da lúcida madeira? Que se abria de súbito unindo dimensões fantásticas de todos os desatinos.
Estava nu. Desprovido dos panos. Encobrir as vergonhas. Nesta constatação eventual a carne se abriu em gargalhada infindável entre o espaço do aço do espelho e o reflexo da corpo. Carne entre o corpo de espelho e o reflexo do corpo.
Silêncio!
Sérios se olharam – decrépitos ambos.
No ar do olho que se encherga dentro do seu mesmo olho, cicatriza o distante; mesmo que no próximo olho que se vê diante, já se perca no profundo espaço do que já fora antes.
No piscar de ambos que se defrontam o que se alcança são só molduras...
Casado. Não está preso. Casado. Aliança no dedo. Dinheiro eroupa não.
Onde a sombra que se pretende homem? Na escuridão deste apodrecer?
Corpo ereto. Alto. Esguio, curvo. Respira a densidade negra que o emoldura. Pretende um grito. Forte, sacro/santo, mas e voz de onde?
Cadê palavras nessa boca murcha que se costura. Onde atitude nessa massa pálida que se constitui?
Onde a sintaxe da texitura deste verbo que não se estrutura. Dessa frase que não se coaduna. Cadê a palavra que neste deserto subserviente se abandona?
Noolho do teu olho no reflexo do teu despojo, no cérebro preso ao osso que o protege; congelas num segundo o tempo que te engendra; do materno exílio ao parto onde te encontras. Olho no olho no olho do teu próprio olho... Infindavelmente. Nesse espelho que não existe. Deste quarto que não desistes. Neste berro que ecoa.
A mão cansada que no movimento se afoga na densa massa que te engole – escuro – onde tudo se confunde. Vago fundo do teu quarto nu. A chave solta pende morta no fio que a conduz a luz.
E no passo que teu peso grita noutro espaço teu corpo afunda. No além da porta-luz.
Luz que te agride o corpo que reduz.
Pardais cinzentos em bandos te observam através do vidro da parede. No muro que individualiza, singulariza os espaços do mesmo. Delimitam os passos de cada um.
Abertos os vidros que iludem com as imagens das coisas. Respiras a terra.
Tudo é terra.
Vestindo as roupas, vestia também seu nome. Novamente recriado a personagem para o dia. Pedro. Pedra que se submete ao formão e ao martelo do escultor. Ao martelo.
A cada amanhecer recriava-se novamente a entidade Pedro. Vestido como Pedro. Pensando como Pedro, agindo como Pedro. Falando. Só lhe era permitido ser o não-pedro à noite e só. Quando despia-se do rótulo que o algemava ao ícone Pedro. Mas nem isso entendia.
Pedro Salinas. Pedra de sal. Desmanchava na singularidade coletiva de todos. Que também se resumiam.
Em um passo de tempo em que sua forma, imagem e sombra traça, mente, cérebro se afastam. Foge, mas em vão não encontra alma alguma. Corpo e carne e osso que sustenta o vulto já bastam, fartam... então parte.
Mesmo sendo pedra consegue ser mais ausência.
Massa de anti-matéria que perambula pelo universo. De qualquer folha o verso. Não o que canta a dor e a idolatra, mas sim as costas. O resto de qualquer escritura. Sepultura?

Findo o trabalho. Traz sua bunda magra e ossuda para o assento gasto da poltrona que lhe abraça. Engole e consome.
Click. E faz-se a luz. De volta.
O calo.
Não fala.
Nada diz.
Calado retira o sapato.
Na térmica ainda água.
O mate?
Morto. Todos os sonhos.
Sorve toda a amargura.
O calo lateja em sua profunda e singular sintonia.
Retira a meia. Entre o dedinho e o outro. Sem emoção. Com as unhas...
Arrancado, desmembrado o inimigo. Tinge o dedo o sangue, também o pé e o chão.
Vai chover?
Quanto mesmo? Quarenta?
Levanta-se.
É preciso fazer alguma coisa.

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