sexta-feira, 30 de julho de 2010

Gato e rato


Ronie Von Rosa Martins





O gato perseguia o rato. Sempre. Corrida de obstáculos em que o rato sempre vencia. Buracos, esquinas, saltos, agachamentos. A frustração do felino. O rosto achatado na parede. O martelo insensível na cabeça. A língua em chamas. A risada que não saia. A mãe que chorava. O rato não vencia sempre não. Encolhido ao pé da cama observava o caminhar trôpego do homem. O pai. O poder. No chão. Esmurrada. Surrada. Os soluços da mãe. O olho do homem no seu olho. Do rato. Gato e rato. O que fazer? Enfrentar o gato? Se oferecer à devoração do gato. A trilha sonora. Alegre, rápida. O denso silêncio. Espesso. Na mão do homem a garrafa. Na mão do homem o punho cerrado. A ofensa na boca. Em cuspe e fel. Em raiva milenar. Em ignorância secular. Impunidade atestada. “E você. Vai fazer o quê?” O gato perguntava em deboche de voz. “Não é homem?” e o rato via o homem e achava que não queria ser homem. Ser homem era aquilo? “Não é homem seu rato!” gritava em saliva e cachaça que expelia em boca que mordia e consumia tudo que era bom. Ser rato era melhor que ser homem. Fugir para a toca. Esconder-se do gato. Recusar o homem. Recusar ser homem. A mãe gemia. E o gato chutou-lhe a barriga. A violência era desmistificada. Pura. Cambaleou o gato. Sentou-se na cama. Sem fôlego. Correra muito para alcançar o rato. Os ratos. Eram todos ratos. A culpa era deles. A vida era uma merda porque eles não ajudavam. Não faziam a parte deles. Era tudo com ele. “Eu faço a minha parte... eu faço...” olhava para o corpo da mulher no chão. “Tu... tu não faz a tua...” apontava um dedo que era um gargalo para o menino e gritava: “Nem tu... ratinho... infeliz ratinho... nem tu faz a tua...”

Do que falava o gato. Pensava o garoto.

“São um atraso.” Continuava o pai. “Um atraso pra minha vida.” Levantou-se mas caiu ajoelhado sobre o corpo da mulher. Gritou no ouvido que já não ouvia. “Vaca!” e riu.

A risada assustava muito o menino. Risada cheia de fantasmas seculares, fantasmas que provinham da garrafa que dançava na mão do homem-gato-pai. O ratinho correu. Pela porta. “Vai seu merdinha... vai pro buraco... vai pra toca...” e ria e chorava. E soluçava o gato. O homem. O fantasma.

Agora tentava acordar a mulher. Empurrava o corpo de um lado para o outro. “Acorda sua vaca, não finge... eu sei que estás aí...” E então parou. A garrafa liberta pela mão tombou primeiro. O sangue da garrafa escorrendo ao lado da mulher. Os olhos esbugalhados. Fora surpreendido pelo rato. Pelo martelo. Seu próprio martelo. Tentou levantar. A embriaguez e o peso da cabeça não permitiram, tombou. Uma. Duas. Três vezes. A mão na cabeça constatava o sangramento. O braço estendido. “Ajuda...” os olhos do ratinho grandes e apavorados. Corpo estático. Tombou.

A criança caminhou até a tv e apertou o botão. Fim.

NA BORDA

Ronie Von Rosa Martins


Depois de ralar o joelho no muro e por fim em pé na borda, equilibrando o pequeno corpo entre o cair e não; de braços abertos respirando fundo, teve a primeira visão do mundo além dos limites do pátio.



E os olhos-brilhando luz e festa e medo, puderam ver. O depois. O depois de tudo que até agora não podia. O muro era alto. E uma brisa gelada e arrepiante o deixava vibrante, corpo em êxtase.



Era o momento em que os pais não estavam. Mãe na escola e pai na fábrica. E ele ali.

Senhor do muro. Dono da amplidão da imagem. Senhor do que cabia em seu olho. Olho devorador de sonhos e imagens. Olho que consumia casas, ruas, distantes árvores. Olho que ouvia. Olho que falava. Era só olhos. Uma visão que se expandia, dilatava para todos os lados e direções. Já não havia um corpo. Agora era só o ver. Empanturrar-se com as cores, os movimentos, os barulhos e delirar com as possibilidades do além muro.



O joelho doía. Mas não importava. Era o sacrifício. Era a paga. O sangue, o esforço. Nenhuma vitória deveria ser fácil. Todos deveriam ralar o joelho, esfolar as mãos no esforço de galgar outros espaços, outras visões.



“Não saia, dizia o pai. É perigoso, dizia a mãe.” E ele obedecia. Sempre obedecia. Era obediente. Bom filho. Mas estava cansado. Sua visão era resumida, determinada pelo muro. Alto muro que protegia tudo e todos. Amigo?



“Pra que tão alto mãe?” “Proteção meu filho, proteção...” E afagava satisfeita a cabeça do menino. A bola que chutava nas paredes já perdera a graça. Movimento espelhado de ir e vir. Reflexo. Os brinquedos... sua imaginação já não suportava mais brincar de carrinhos. Estradinhas e essas coisas. Caminhos exatos. Chutou os brinquedos. Dentro da casa a tia. Senhora idosa e obesa. Rosto vermelho cabelos fartos e risada gostosa. Mas agora dormia. Ela sempre dormia. Adorava televisão – para dormir. Hipnose. Era apertar o botão e em seguida ouvia-se o ronco. Foi quando ouviu o ronco que saltou no muro e ralou o joelho.



Tinha oito anos. Agora tinha quarenta e dois. E de braços abertos respirava o mundo. Profundamente.



Ainda morava na mesma casa. Herança. A mulher não gostava. Ele também não. Mas adorava a borda daquele muro alto. Os filhos achavam engraçado. Os vizinhos também. A mulher já se acostumara. Excêntrico, maluco... Mas ele não ligava. Podia chover cair raio e coisa e tal. E lá ia ele, sempre, todos os dias. Subia no muro, abria os braços e respirava. Respirava tudo e todos. Depois caia dentro do trabalho. Dedos vibrantes, olhos que faiscavam letras, frases, idéias, conceitos, contos, artigos, livros, resenhas, escrevia o mundo. Mas não o mundo exato. Criava o mundo. Criava. Era senhor do muro. E da borda estava em contato com os fluxos e energias, e re-criava. E era muito bom.



Um dia um dos filhos perguntou “Pra que tão alto pai?” e ele disse “Pra poder voar.”