sábado, 1 de setembro de 2012

Cartografia de um delírio




Primeiro foi o estômago. A necessidade de uma certa saciedade. E o encontro com todos os corpos presos a esta saciedade. Corpos que reduzem os espaços. O restaurante é uma grande estômago. E somos o alimento. Comida. Comendo. Os olhos nem vêem. Mas o calor é sentido. E enquanto caminho equilibrando meu prato de arroz salada e um singular peixe frito, percebo a dificuldade de locomoção do meu corpo que se desvia de cadeiras, mesas, e conversas desinteressantes. A televisão me impõe um jogo de futebol. Mesmo sem querer meus olhos a buscam. Camisas amarelas deslizam em fluxos virtuais. Sento junto ao grupo de amigos, tentamos começar uma conversa. Produzir discursos e dizimar a fome. Um estranho senta em nossa mesa. Jamais teria coragem de fazer isso. Ele come como se não fôssemos ninguém. Não éramos. O sujeito de sua vontade era a fome. O objeto o prato de comida. Seus olhos não buscam nada além. A fome. Estou impaciente. Outras pessoas aguardam com seus pratos fumegantes e suas porções únicas de carne. Estamos no terceiro salão. Há um corredor entre o salão da frente, por onde entramos. Há um sofá velho e a porta da cozinha. A produção do alimento. Não gosto de ver fazerem o que como. Um homem pequeno está no sofá. Parece ler um jornal. Não sei se faz parte dos donos do lugar ou só espera por uma mesa. Estamos sempre esperando... sempre esperando por uma mesa...



Em uma pequena churrasqueira perto do corredor um senhor de aparência germânica prepara um espeto de frango. Na verdade são várias coxas de frango. Ele corta. E rapidamente come um pedaço. Parece estar em casa. Sinto vontade de uma cerveja. Bem gelada. Bebo um gole de refrigerante. O "pessoal" está alegre. Conversa inteligente, coisa de faculdade, projetos. Algumas piadas. Eu insisto para que terminemos logo. Quero sair. Ar. Alguns ficam. Eu e uma colega abandonamos os que comem. Ela busca fogo com um senhor baixo e negro que está escorado em uma porta. Volta satisfeita. O cigarro aceso. Estou cansado. Suado. Logo todo o grupo sai. Abandonar de vez "os que comem" é um alívio para mim. Há um colega que nos re-conduz. Conduzir é uma palavra interessante. Tem uma certa pompa, estilo, "meio que afetado, meio sacerdotal" lembro do poder pastoral em Foucault. Mas não é o momento. Nossos corpos estão comodamente acoplados à lataria e o estofado do carro, e ao motor, e ao som das rodas nas ruas de pedra e ao fluxo dos outros carros e ao tempo que escorre e à distância que diminui. Meu estômago dá o sinal. Meu inimigo. Criança levada que sempre complica o passeio. Finjo não perceber. Finjo não perceber que os outros perceberam. Todos fingimos. E agora estou no banheiro. Escovando os dentes e me olhando. Um rosto no outro. Cuspo a água e saio. Há um trabalho ainda por fazer. Pesquisa de campo. Uma praça. Meus amigos estão no jardim e a conversa é sobre homossexualidade, sexo, liberdade e essas coisas. Tentamos dar um tom inteligente aos nossos comentários, eu tento. Exercício de oratória.

Há uma necessidade de aquecer água. O chimarrão é um apêndice do meu corpo. Mas pesa e as vezes fico com vontade de fingir que o esqueci e abandoná-lo. Nunca faço. E carrego-o por onde ando.

Minha bolsa e o notebook pesam no meu ombro. Mantenho a pose. Agora o blazer também está no braço. O calor é intenso. As conversas dos colegas parecem um som estranho. Sei que estão ali. Reconheço suas vozes, mas estou longe. Caminho observando os corpos e os espaços que eles ocupam. Andam rápido. Sérios. Alguns passam as mãos na barriga. Comeram. Tenho vontade de alisar minha barriga também. Impossível. A mateira na direita e o casaco na esquerda. A bolsa no obro. Tenho que ter equilíbrio. Penso em sentar perto do chafariz. Sombra. Tomar um chimarrão. Descansar. O que me chama atenção de início é o lânguido descanso de dois jovens. Homens. Em um dos bancos que circundam o chafariz. Um está sentado e o outro tem a cabeça no colo do outro. São jovens. Parecem felizes. E minha maldade começa a tecer comentários maldosos. Quero sentar em uma sombra. Mas o sol no momento é senhor. Uma de minhas colegas que encontramos na praça, a praça era o local do encontro de todo o grupo. Pesquisa de mestrado. Começa a fazer anotações, ela parece lhar para a água. Nesta praça existe um pequeno espaço onde algumas tartarugas e peixinhos sobrevivem. Ela é aplicada. Minhas colegas, outra. Notam uma tatuagem que quase salta para fora das costas de uma moça que conversa com um "suposto" namorado. Não me atrevo a olhar mais que alguns segundos para a imagem da carne tatuada. Já não é o caso das minhas colegas que mais tarde discorreriam sobre os prós e contras de fazer uma tatuagem. Ainda lembro de algumas palavras que a professora, lá de sua "torre" próxima à praça dissera. Nosso QG era uma doceria, subíamos algumas escadas para ouvir nossa professora americana. Texas. Estávamos em Pelotas. Eu sou de Pedro Osório. Distâncias, proximidades, encontros. "determinar um foco" . Era para escolher o que ver, o que analisar. Lembro de ter observado pela janela e perceber as pessoas e os carros. O movimento que circundava e penetrava a praça. E também fluía dela para a cidade.

"Os velhos jogavam damas". As palavras tem força. E isso não é meramente uma metáfora. Havia dois tipo de jogos bem definido naquele espaço, ou naquele não-espaço como dizia Bauman. Em um tabuleiro, sentados ou em pé, alguns aposentados se distraiam jogando damas. Estratégia simplória e divertida. Mas em outro tabuleiro, as "damas" se mostravam estrategicamente aos olhos desconfiados e brilhantes de outros aposentados. Percebo que duas delas estão em um banco logo a frente de mim e de meus colegas. Estão discretas comparadas a algumas roupas que algumas meninas da "moda" costumam usar. Não conversam muito. Uma procura uma música no celular, faz esse comentário para a amiga. Percebem que estamos apontando e as observando de forma diferente e nos abandonam.

Eu vago por entre meus amigos que se distribuem na praça. Não aponto nada. Esqueci de trazer papel e caneta. Gostaria de escrever. Tiro a câmera da pasta. As fotos não são boas. Tenho medo de interferir, atrapalhar a privacidade dos outros. Percebo que uma menina que está namorando em um banco nos observa, por alguns segundo eu também a observo. Sou um homem de meia idade, com a cabeça cheia de filmes e livros, ela é bonitinha e não parece ter o mesmo interesse que o namorado lhe devota. Volta e meia ela me olha. Ou olha para todos nós. Somos um organismo estranho na praça. Intimamente prefiro pensar que ela me olha. Faço um carinho no meu ego. Homens de meia idade e casados e comportados frequentemente têm esses arroubos. Ela está curiosa. Eu também. O que ela está pensando? E o namorado que procura um beijo, uma boca e recebe apenas uma bochecha?

Todos os caminhos levam a um centro. Ao chafariz. E todos os corpos caminham para perto ou para longe dele. Um homem de chinelos e com um curativo no braço enfia as mãos na água , lava o rosto e molha o cabelo. Alisar o cabelo. Limpar o corpo. Sai satisfeito. Os velhos procuram o banheiro. E o banheiro fede. Meus amigos analisam a situação. Quantos entram, quantos saem. Eu entro. Pedem que tire uma fotografia. Mictório imundo. Vaso imundo. O papel não é higiênico. Ó que limpa são os panfletos das lojas. Estes estão sujos e amontoados em um cesto também imundo. "grevistas" é a palavra que se encontra escrita em uma porta cor de laranja. No canto logo à saída uma vassoura dentro de um balde verde. A promessa de algum tipo de limpeza ainda por vir.

Depois são os livros. Encontro com uma colega que me diz saber de dois sebos ao redor da praça. Me empolgo. Livro é uma coisa que me excita. Penso em uma cerveja gelada. Desta vez não digo. Bebo a cerveja mentalmente. O primeiro sebo está em construção. Os livros estão no chão. Poucos. Didáticos. Me decepciono. Algumas quinquilharias. O tempo passado abrindo brechas no presente. O outro é organizado, livros enfileirados. Não gosto. Muita ordem. Voltamos à praça. Duas senhoras atravessam o não-lugar. Uma delas é surpreendente. Vestido branco. Salto alto e fino. Cisne que desliza... mas é deselegante e feia. Tenho pena de tanto branco. Ofusca.

Meus colegas comentam sobre as "divisões" da praça. Onde ficam as prostitutas. Fico pensando se a palavra "prostituta" não é mais feia que "puta". Fico na dúvida. Uma é institucional, a outra é do povo.

Dentro da praça. No corpo da praça. Várias pessoas tomam chimarrão. Os rostos são mais calmos e descontraídos. Ao sair da praça assumem suas máscaras. Os passos dobram de velocidade. Mas são outros. Nunca são os mesmo. Rio de Heráclito.

Agora a praça está tomada por jovens. Bem no centro. Junto ao chafariz. Turmas, gangues, grupos. Poucos estão ali sozinhos. Os que estão só. Caminham para longe da solidão.

Há também um artista interessante. Chapéu estranho. Chega de bicicleta e declama/canta seus versos estranhos e críticos. Excentricidade. Mais um produto?

É hora de ir. Ainda lembro do homem que atravessou os canteiros e cumprimentou as duas prostitutas que estavam perto de nós. Da mulher que empurrava o carrinho de nenê. Das três moças levemente obesas que tomavam mate quando chegamos. Do senhor "aposentado" todo velho parece um aposentado aqui. Nessa praça. E da rapadura que retirou do pote de plástico.

Lembro do fluxo intenso de corpos que mudavam de lugar e se locomoviam pelos possibilidades da praça. Lembro da minha colega simulando uma prostituta ao se afastar para fumar. Do outro colega que mesmo concentrado em suas tarefas de pesquisador, ainda arranjava tempo para tratar de negócios pelo telefone.

Minha parte no relato da pesquisa foi mostrar as fotos do banheiro masculino para o grupo e para a professora. Minha amiga deu conta de relatar as andanças do povo pela praça.

Escapuli. Minha casa era o objetivo e desejo. Mais que a cerveja gelada. Na parada percebia o movimento intenso dos ônibus. O semblante carregado das pessoas que buscavam as linhas certas para os espaços certos. Uma cadeirante esperava o ônibus. Um sentimento de impotência me tomou. Queria fazer alguma coisa. Ajudar de alguma forma. Todos queremos ser heróis. Fiquei estático. O primeiro ônibus não pode levá-la, a estrutura do ônibus não permitia a entrada da cadeira de rodas. Mas o motorista foi solícito ajudou a moça a entrar em outro. Este com arranjos para a cadeira. Me senti um idióta.

Minha idiotice se desvaneceu quando percebi a tatuagem que adornava as costas de uma menina que supus já ter sido minha aluna. Conjeturei muitas coisas. Colorida tatuagem que espiava por entre uma calça apertada e uma blusa que teimava em encolher. Era boa aluna. Lembro. Não me reconheceu ou fez que não me reconheceu. Aceitei. Reconhecemos quem queremos... entrei no ônibus. E encontrei outro professor da mina cidade. Ele sorriu e disse: "do coração eu não morro." Um exame médico entre as mãos.

Nesse mundo de velocidades intensas, um check up é indispensável.

Ainda lembro da informação da mulher no restaurante: "Você tem direito a só um pedaço de carne."

Eu poderia escolher entre galinha, peixe e gado.

Espetei um pedaço de peixe... fácil e rápido de digerir.

Na rodoviária. No banheiro. No espelho. Meu rosto perplexo.

As torneiras não tinham água.



terça-feira, 19 de junho de 2012

A ceia: a palavra na mesa


A palavra. Forma estendida. Entendida e servida. Servida à fome. A palavra ceia. Para matar a fome. O rito. Ritual da mesa. Posta. Ao redor os corpos. Organização do corpo-mesa. E nela eles. Objetos da nossa fome. Da nossa fome de significar. Estratos do nosso estar na mesa. Estáticos. Calmos. Senhores do território. Da mesa posta. Dóceis. Todos. Já não há distinção. Somos todos. Eles. Os objetos. Nós os sujeitos. Só a relação. A força. O encontro. O agenciamento. Acontecimento.


Acontecer é criar. Representar já não é possível. Exaurido o antigo ritual. A sacralização do objeto. Da palavra que recobre o fato. E também o fato que identifica o objeto. A coisa.

Cartografar o movimento é necessário. O fluxo do passo que se perde a espreita do sangue, do grito, do objeto outro e mesmo. Os olhos buscam ou são buscados. Atentos aos corpos das coisas que vibram perigosamente. Forças. Passos da indecisão. A não-certeza é bem vinda. O delírio da imagem em excesso. Sufocação. Porre de cor,forma, utilidade, peso e medida. Imagem-prisão. Como a palavra que a sustenta. Em fila. Em cópias. Simulacros. A imagem morta na estante. Morta na indiferença dos corpos vários e tantos. Imagem-multidão. Corpo-massa. Todos em relação ao objeto. A imagem da força. Agora nova.

Há uma fome. Vontade de potência. Corpo sem órgãos. Ovo vibrante que não se permite delinear. Configurar. Resistência.

Há uma fome disforme. Dentes que buscam a própria mesa. Antropofagia do objeto. Duplo roubo. Na mesa. Resistir à mesa e sua circunstancia. Renegar a mesa e o território dado, posto. Pensar a não-mesa e o que dela não se pensa.

A ceia.

Na boca. Escorrendo inusitado a seiva de um outro objeto. De outra forma. Quebrando. O régio pensamento. O único entendimento. Pulverizando o uno na possibilidade do absurdo. Na intenção da perversão. Perverter o corpo da ceia. Perverter o sentir da ceia.

Dividir o doce bolo de nossos conceitos já prontos com serrote e força. A delicadeza do caos. Na boca. Sorver a doçura do deslocamento do absurdo. O do olho desconfiado. Do nojo que se identifica. E pensar esse nojo. Pensar o deslocamento. Desterritorializar. Na bacia onde lavamos a cara, o rosto, a pele, a carne. Na bacia grotesca comer o pão. Com a mão. Com espanto. Espantar a formação. A determinação. Renegar então essa rima pobre. Eco. Despir o ego. O sujeito. A identidade.

O objeto vibra. Na mesa. E em cada boca. Rega uma possibilidade. A ceia jardim. Jardim do absurdo que cria pensamento que pensa o pensar.

A mesa já não é limite. A mesa é fluída. Diluída na perversidade do deslocamento. É linha a mesa. De fuga. Mesa de comer devires. Mesa de se abandonar em fluxos. Mesa de comer-se. Mesa de devoração de “eus”.

Cada objeto é um “eu”. Cada palavra que o significa é um “eu”. E todos são prisão em sua forma determinada. Em sua utilidade definida.

Não mais. Agora o objeto é possibilidade. Agora é desconstrução. O objeto isento da mediação do nosso gosto, sentido. Intelecto.

Com Alice. Sentar à mesa do chá. Com Artaud cuspir no buraco o sangue e o corpo morto da significação. Com os Taraumaras dançar na borda do abismo. Mesa. Mesa abismo de sentidos. Mesa abismo da forma. Mesa-caos. Mesa-objeto sem órgãos.

O objeto livre da palavra. A utilidade posta em jogo. Inutilizar o estático do pensamento. Da imagem.

Mesa garganta. Mesa da devoração de nossas certezas congeladas.



BON APPETIT...

terça-feira, 1 de maio de 2012

NA CARNE


     E não era ninguém quando morri. Apenas o espaço vazio da porta e a dor na barriga. E já os olhos me iam com imagens de indefinição.
     Um rosto estranho. Pálido. E um estampido a me arder a carne. Segundos. E só eram os pés dele que via.
     Sapatos de brilho singular. Minha cara de espanto, distorcida no verniz dos pés dele. Meu olho que se alarmava à proximidade do cano que descia até minha testa. E então o nada.
     Mas por segundos...
    
     Ele não sabe. Nem imagina. Mas estou nele. No seu passo firme e convencido. Agarrado em sua carne. Mesmo que quisesse não conseguiria.
     Ele é saboroso em sua maldade incondicional. Alimento pra minha fome etérea e eterna.
     Exala confiança enquanto pelas brechas e poros da sua carne, invado sua sanidade.
     Acha que não sente nada. Pensa que me esquecerá em segundos. Mas meus dentes devoram seu cérebro e suas memórias.
     Acredita que no bar, encoberto pela fumaça e álcool  se livrará do meu corpo a mastigar-lhe.
     Belo em sua boca o álcool que escorre. Etílico elemento. Vejo seu coração. Pulsando... pulsando.
     Um carro estaciona e somos levados. O homem gordo cara fechada pergunta “deu tudo certo?” “Sim.” É a resposta. Então um envelope é trocado de mão. Dinheiro que recende a sexo e drogas. Os bolsos estão cheios. O carro nos larga e a algumas quadras meu assassino entra no ônibus e senta para morrer.
     Não há inferno nem demônio. Há apenas a fome. Todos têm fome. Tudo tem fome.
     A humanidade é um termo... conceito muito limitado. Dirão que não sou humano. Que sou um demônio. Não sei. Sei apenas que este coração tem o gosto de toda minha fome. Todo o meu desejo.
     Provavelmente ele sentirá dor. Abrirá a boca em grito mudo, mãos no peito. Falta de ar... O corpo debatendo-se no chão.
     Na minha boca, escorrendo, o suco amargo e delicioso de todas as mortes.

PERIGO





O sol estava como se não estivesse. Sombrio o dia. Espaços delimitados de calor e luz. Fracos. Débeis. A cor era o cinza. Assim como o espírito. Cinza.
E caminhava por aqueles dias mortos. Passos arrastados. Olhos cinzas. Quarenta e sete anos cinzas. A tentativa do sorriso foi um fiasco. Não sabia rir. Nem mesmo com sarcasmo. O sorriso fora impugnado, interditado. Definitivamente não sorria. Caminhava. A barba espessa sufocando. Vegetação selvagem. O animal ressurgindo. A razão indo. Só a sobrevivência. O comer de cada dia. O respirar. O peso do lixo. Caixas e caixas de papelão. Montanha arrastada pelas ruas da cidade. Tartaruga humana. Dores que se ramificavam por todo o corpo. Músculos. Mãos calosas. Homem-cavalo, cavalo-homem. Arrastava e era arrastado pelas ruas. Baleia e Lambaria eram os amigos. Cães. Os humanos não. Não gostava dos humanos. Eram maus. Todos. Os cães não. Esses eram amigos. Baleia veio do livro. Do texto encontrado no lixo. De um tal de Fabiano de um tal de Graciliano. Sempre lia os livros que encontrava. Livros em pedaços, molhados. Novos também. Muitos. Não entendia muito. Mas gostava. Não era burro. Sabia ler. E ali encontrou a Baleia. Lambari veio depois. Ambos pretos. Baleia grande e brava, Lambari pequeno e barulhento. Baleia no chão, ao lado. Quieta. Lambari na carroça. Preguiçoso. Provocador. Ele gostava.
Divida a comida encontrada. Comia pouco. Na verdade nem tinha fome. Comia por uma necessidade do corpo, de um roncar de estômago que lhe avisa. Nômade. Decidira que não moraria jamais em uma casa. E morava na rua. Encostava a carroça em um beco. Fazia uma pequeno fogo. Cozinhava o que podia em uma panela que trazia amarrada na carroça e pronto. Mas antes tinha. Tinha uma casa sim. Pequena. Mas era dele. E tinha uma mulher. Dona Enilda. Um dia Enilda disse que era pra ele ir embora que não lhe tinha mais amor. Ele argumentou que talvez fosse melhor ficarem juntos. As coisas estavam difíceis. E então ela disse que tinha outro. Que ele ia morar com ela. Que ela queria. E como tinha um guri que ficaria com ela, nada mais justo que ele fosse embora. Nem chorou. Nem se desesperou. Quando foi embora arrastando a carroça vazia, ela fechou a porta. Tinha acabado tudo. Tudo. Morava num bairro onde a pobreza e a promiscuidade eram o chão onde todos pisavam. O papelão vendia. Para O João Maneta. Homem baixo e gordo. Desdentado. O Maneta comprava tudo. Gostava dele. Dava conselho. Emprestava uns trocados. Atirava uns pãos pra Baleia e pro Lambari. Ele gostava.
Mas não dormia no centro. Nunca. Gente má. Gurizada do diabo. Conhecia uns que tinham sido queimados. Outros espancados. A policia ria. Fazia cara de preocupação quando os jornalistas chegavam. Mas riam muito e faziam piada quando iam embora. Não. Ele saia da cidade. Do centro. A partir das cinco horas da tarde ele começava a sair. Só parava quando o lugar era mais calmo. Tranqüilo. Descampado.  Preferia os bichos. Cobra, aranha, escorpião. Tubo bicho melhor que o homem.
Foi em uma destas vez que encontrou ele. Braços abertos. Boca aberta. Peito aberto. De bala grande. Buracão no corpo. Morte. Bem vestido. Cheiro de gente importante. Primeiro foi o susto do corpo em braços de abraço de morte que pretendia dar. Recuou. Pensou em correr. Baleia e Lambari cheiravam. Farejavam. “Sai, sai.” Ralhara com os amigos. Em pés curtos de relutação, aproximou-se do morto. Carteira. Dinheiro. Relógio. Nada. Não tinha nada. Era como se o enorme buraco no peito tivesse consumido tudo. Resolveu afastar. Separar seu corpo morto daquele outro. Mas Lambari entrou em um pequeno matagal. Farejando. Logo Baleia sumiu atrás. Ele resolveu ir junto. E foi então que encontrou. Guardou no meio de um papelão que dizia perigo. Amarrou com barbante e guardou bem no fundo na carroça. E tremeu. E fugiu. Medo. Do morto e da polícia. Da polícia e de quem matara o outro. O morto.
A vida era estranha. E disso ele sabia. A sua nem vida era. Espécie de resistência. Permanência. Impertinência. Mas e daí. Não se lamuriava. Era mais um bicho que gente. E sabia disso. E gostava.
Quando a lua abriu o olho e o viu lá embaixo. Baleia e Lambari correram. correram muito. Na frente. Ele parou. Medo? Dobraram uma esquina e latiram. Latiram mais forte. Baleia rosnou. Latiu. Ganiu. Lambari alucinado latia. Ele agarrou firme os braços da charrete e puxou com força todo o seu precioso lixo. Parou. Estancou. Baleia estava estirada no chão. Lambari furioso latia para três homens. Uma mulher estava caída. Atrás dos homens. “Vai andando mendigo!”  gritou uma voz que veio de um rosto que não se via. Baleia gemia.
A mulher gemia. “Vai indo ou a gente te queima!” e riram. E foi neste momento que ele pensou que realmente as coisas eram engraçadas. E que a vida é muito estranha. Não estava nem com raiva, nem furioso. Mas ia fazer aquilo. Era como se tudo já estivesse predestinado. “Sai fora imundo!” O brilho de uma faca cintilou. E o que falava deu dois passos para frente. Foi ai que ele enfiou a mão no meio dos papelões e pegou o pacote. Perigo. Rápido puxou o grande revólver. Negro e poderoso. A bala foi cuspida com raiva. Diferente do que sentia. A arma tinha seus próprios interesses. Seu próprio sentimento. E um grande buraco abriu-se no peito do primeiro. Medo. Os outros dois tentaram fugir. O segundo tropeçou na mulher. Caiu. Ao levantar-se recebeu o projétil na nuca. Sangue. O outro tentou argumentar. Abanava as mãos. Fazia cara de coitado. Pensou em não matar. Mas Baleia gemeu. A mulher. Encolhida. Gemeu. Puxou o gatilho. Apanhou a cadela e a colocou da carroça. A mulher o olhava. Ele olhou fundo nos olhos da mulher. Colocou a arma dentro do papelão, amarrou novamente e largou ao lado da mulher. “Perigo”.

A velha


Todo cão é um bicho. O homem. Bicho também. Pensou a velha. Sentada na cadeira. Rosto na janela. Moldura antiga. Vetusta imagem do tempo gravada. Nas rugas que percorriam todas as carnes que compunham o rosto da velha.  A televisão era a janela. Sempre a janela. E o fora do mundo. O seu.

A rua e sua oferta. Pobre a rua. Mas proposta. Que recusara há muito. A janela bastava. E os olhos iam longe. O que não viam criavam. Poderosos olhos de inventar verdades. Que seriam ou não.  Virtualidade latente. A semente e a árvore. A árvore em estado de vontade de ser.
Velha. Lhe chamavam carinhosamente. E sorria sempre. Dentes desgastados mas ainda presentes em sorriso espirituoso e distante. Os parentes eram memória. O marido ausência. A morte era uma coisa interessante. Pensava. No início magoava, doía. Depois afagava, acarinhava... não sabia se queria. Estava em dúvida.
Decisão difícil. Viajar para o distante... sorriu. A janela como moldura. Da rua os olhos outros sempre viam o mesmo quadro. Até a noite. No escuro. Não saia da janela. O sono não existia, parecia morte, e ela não tinha decidido.
E era com ela. Ninguém interferiria. Ela tinha o poder. Na aparente fragilidade,  uma força latente pulsava, e era nos olhos grandes e claros que se mostrava. Olhos de ver tudo. Olhos de devorar tudo. Nem a noite escondia dela seus segredos. E da janela ela via. Sem medo. Via as angústias de todos, os medos. Via os fantasmas e segredos que escapavam dos sonhos e dos tormentos noturnos. Também as fantasias e os terrores, desejos... e nem ruborizava, acostumada com as coisas humanas dos homens.
Criaturas estranhas

Palavras sopradas




Colocou os óculos. Imagem ampliada. Consciência? Sorria diante da folha virtual. O mundo era virtual. Mas era real também. Realidade em devir. E o sorriso era algo por aí. Misto de chegar e não. Coisa que não se decide em ironia ou dor.  Indecisão. Cisão. E começou.
Escrever. A música alta no pátio procurava caminhos outros. A atenção se esvaindo em nota e letras. Engenheiros. Engenharia. Tudo era engenharia. Pensou.
Concentração. Havia uma necessidade de desligar-se. Precisava articular o texto, a idéia. Articulação. Mas havia uma impossibilidade de determinar o assunto, o tema. Era sobre o escrever?
Era sobre o escrever? Sobre isso. A ação de engendrar letras, palavras, frases, idéias, textos? Era isso. Um sofrimento. Uma alegria.
O sol era um convite. Rua. Vida. Mas a página também era vida. Sua. E as letras também. Coisa de arrepiar. Nômade perambulando em vasto deserto. Erguendo acampamentos moventes em espaços de dimensões perturbadoras?
Sim. Era isso. Avizinhar-se desta condição. Nômade. O deserto era a folha. Lisa. Espaço liso. Criar um mundo. Mesmo que fosse fugaz . Mas um mundo. Não uma fuga. Não uma desculpa. Mas uma luta. Uma guerra. Sim. Tinha que ser isso.
Uma guerra silenciosa. Dobrar e desdobrar os sentidos todos, resistir nas e pelas letras, nas folhas. Brancas como Moby Dick. Assustadoras. Buscar o não-senso do comum. Questão ética. Estética. Algo do gênero.
Fome. Consumir. Então o chimarrão quente. Líquido. A liquidez das coisas. As cheias. Zigmunt. O arrastar. Derretimento. O mundo escorre. E o tempo corre. E corremos nele. Todos. Acabar. Destruir as estruturas da tradição? E depois? Mais estruturas novas e mais sólidas. Sentido? Filosofia pela manhã é mortal! No sábado. Deus! Sinal de problemas, delírio. Loucura?
Brinde então a Artaud. O ácool logo vem. Noite. E as letras se acalmam. E a folha dorme. Branca e ameaçadora. Ilusão... as palavras surgem como exército furioso, desordenado, cuspindo incoerências, mágoas, ironias... teorias alcoolizadas. Palavras-sopro.
Ousar enfrentar a adiposidade estrutural da língua com a agramaticalide do delírio. Então o fim. Com Bartleby "prefiro não".

A bruxa




E ela levantaria os olhos para o céu. E a reza estaria neles – claros grandes, brilhantes... esperançosos – antes das palavras-resmundos-lamúrias que diria. Mãos vazias para o alto.
Dona Nandinha era uma bruxa. Pelo menos para mim. Guri que fui. E que na sua presença aprendi o mundo que via, lia e dizia.
Mas era uma daquelas bruxas boa de abraçar. Na flacidez dos anos e da pele fria. Estranha para mim. Guri de sete anos e com o calor todo do corpo nas pernas que corriam ruas inteiras. Hoje memória e história.
Vizinha da minha mãe. Mais velha que todos. Antes do médico era ela que corria para as casas-chá-efusões-xarope-rezas-beijos carinhosos nas crianças-histórias fantásticas anteriores a qualquer memória.
Pequena. Gordinha. Cabelo crespo. Olhos redondos. Voz grave e forte. Firmeza nas mãos e nas pequenas pernas que se recusavam a temer ou respeitar a imposição do tempo.
Uns diziam curandeira, parteira outros. Rezadeira, mais alguns. Mas de profissão costurava. Com linha construía. Edificava, reformulava a vida de todos que a circundavam.
Remendava e reconstituía os pedaços de todos nós. Cortava o que não prestava, cerzia nossas feridas, remendava com cores alegres nossas dores.
Pela manhã. Cedo. Fazia o mate. Quente como o fogo e ligava o pequeno rádio. Baixinho cochichava no ouvido da nossa bruxinha as novidades do mundo e seus perigos. E ela levantava os braços e olhos para o céu e rezava. Segurava com suas rezas o mundo todo e todo o seu peso. E era feliz.
E era forte a Dona Nandinha. A casa era repleta de bis quis, vasos de flores e incensos. Retratos pelas paredes em molduras antigas. Guardanapo bordado na mesa da cozinha e no tampo do fogão. A leitura
Tinha um gato que não era dela. Dizia. Mas comia e dormia na casa. Godot era o nome. Ela lia. E fazia ler. Às vezes nos pegava na rua e nos tomava a leitura: Moby Dick, As viagens de Gulliver, Sítio do Pica-Pau, contos de fadas, as Mil e uma noites...
Na época era um suplício, mas lembro que depois – na rua – nos gabávamos para os amigos: “Tive que ler dez páginas do livro tal... e o outro retrucava cheio de segurança e superioridade: Pois faltam dez páginas para eu ler o livro todo!”
Era uma bruxa sim. E vivíamos envoltos em magia.
Um dia Dona Nandinha morreu. Venderam a casa, os livros e o gato fugiu. Fugiu para minha casa. Envelheceu lá. Eu com ele. Hoje é lembrança. Memória mágica.
Ligo o rádio. Os olhos para o céu. Profundo céu de possibilidades. Estou constrangido... mas levanto as mãos. Busco um pensamento que se avizinhe de Deus. Faço uma reza resgatada dos confins da minha infância.
Sorrio. A vida é boa. Uma nuvem sorri para mim. Tem a cara da Dona Nandinha.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Pequenos romances






Dizer o quê?

O buquê de flores em mão fria e morta.

Dizia que não amava. Que não o amava mais. Já amara. Mas não agora, visto que o tempo de maligno e distancioso cansava os prazeres e os sabores do corpo e da alma das gentes.

E as palavras eram de rosto sem raiva, rancor ou pena. Rosto branco de indiferença destas que tanto faz como tanto fez ou que fará. E as flores morriam no peito e na mão de tão sofredor vivente. Morrente?

Como podia? Como podia rosto-lápide dizer de tal forma tudo o que dissera? E pior. Como pudera dizer o que ficara por baixo da palavra dita. Como podia?

Devia xingar. Gritar e dizer que não merecia. Que era bom, respeitador, merecedor dos respeitos das famílias todas. Dos patriarcas às matriarcas, homem sério e de futuro garantido por diploma em escola pública dos alfabetos todos compostos, de letra em papel e discurso na língua... que já ensaiava até umas políticas. Convite não faltava. Palanque foguete e braço erguido. Nome respeitado de família e tradição.

E agora essa? Vergonha?

Era coisa de outro, que se insinuava? Corpo que se avizinhava de olhos e sorrisos maldosos, enfeitiçando as condições estáveis e amorosas dos outros? Seria outro. Homem das caras lisas e sorrisos brancos, desses de passos leves que dançam e gracejam e lisonjeiam, e piscam e flertam sem pudor?

Seriam desses que mostram que não prestam e atraem as inocências da meninas tolas, cheias de sonhos e luas nos olhos e fogo no corpo?

Se fosse era coisa de bala e revólver. Que dissesse o nome, sobrenome e procedência. Que dissesse onde, quando e como. Que a encomenda por justiça e honra já estava sendo feita.

Rasa cova e chumbo quente. Era disso que se tratava?

Não? Não era?

Era coisa dessas do coração que para desavisado de gostar e sentir carinho e seca assim sem mais. Coisa dessas que aflige os homens e mulheres. O final de todos os pontos. Secura que risca a garganta. E não há mais jeito ou forma ou maneira.

O outro já não passa de distância e lembrança. Vaga imagem que o tempo lambe e consome depressa. Com flores na mão e tudo.

E o coração? Um dar de ombros responde. Alheio. Seco. Sorriso que se esforça por transformar constrangimento em naturalidade.

E as flores?

O chão. Cova ao pé da porta que se fecha. Silêncio. Desilusão.

Um homem que corre criança. Que chora.

Num flash

Num flash




Estava além de qualquer horário. Era intrigante. O relógio já não mais lhe apontava ameaçador, seus ponteiros pontiagudos. Livre. Livre?

Já não sabia. Não entendia qualquer liberdade. E enquanto a mulher retirava o corpo da cama e se preparava para trabalhar. Fingia dormir. Era um grande fingidor. Até felicidade fingia. Sorrisos, amenidades, afagos... era bom em fingir. Do outro lado do quarto ouvia o movimento da filha. Escola. Barulho na cozinha, banheiro. Vida. E ele fingia. Cerrava os olhos. Não pretendia ver. Não mais. Ou não era visto?

Mecanicamente recebia o beijo da esposa que saia. Certa vez, para teste, acomodou-se sob as cobertas a fim de esconder o rosto. Ela beijou o travesseiro. Nem sentiu. Mecânico. Mecânica. E saiu. Como sempre saia.

A filha gritava “até!” e ganhava as aragens da juventude. Ele fingia.

Aposentado. Aposentado da vida. O corpo teimava em ficar definhando na cama. Morrer dormindo... Tranqüilo. Era o que queria? Era?

Levantar. O corpo em movimento até o banheiro, o espelho o rosto. Quem?

Um mesmo rosto de sempre e de todos o observava sem emoção. Até com indiferença. Inchado pelo não-dormir-fingir.

De cuecas a TV. O sofá. Jogar o corpo novamente. Catástrofes. Mortes. Corrupção e sacanagem. Muita sacanagem em todas as esferas. O dedo erguido em afirmativa conclusão. Click. O silêncio da casa.

Terrível o silêncio da casa. A falta de fome, o sem-sentido da fome.

Então o banho. Escorrer. Diluir o corpo. Fluir pelo ralo. Desmanchar-se. Sabão para desinfetar a alma. Espuma para... para que a espuma? Água!



Na rua já não é mais “ele”. É todos os outros. Iguais. Rostos todos. Perde-se neste não-ser-quem-é infinito.

Todos são ele. Indiferentes. Mesma cara plantada, mesma cara lavada, mesmo desamor, desassossego, desilusão.

O jornal. Pelo caminhar até a banca. Pelo mover o corpo. Pelo pagar o papel. Pelo contato com o “Seu” Felipe da Esquina, o vendedor de mentiras. Era o próprio Felipe que se auto-intitulava. “Compre aqui, minhas mentiras são melhores que as dos outros...” e balançava a enorme pança numa gargalhada tão bem treinada que parecia até natural. Devia ser um outro fingidor, todos não eram?

Uma piada desprovida de qualquer humor, um comentário fatalista qualquer, um até logo. Pressionado sob o braço, levava o jornal até um banco já pré-determinado da praça. Sentava. Olhava para os lados. Ninguém. Nunca havia ninguém. E mesmo que houvesse seria ninguém. Cruzava as pernas, respirava fundo e passava os olhos naquele mundo de letras. Tédio. Um grande tédio. E então fazia o que fazia sempre. Página por página. Arrancava como pétala de rosa e largava ao vento. Certa vez um guarda o interpelou. “Por que isso?” Sorriu e ofereceu os pulsos juntos. Cadeia? O guarda olhou para aquele rosto velho e cansado, sorriu, balançou a cabeça, apanhou o jornal espalhado, jogou no lixo e afastou-se meneando a cabeça. “Esses velhos...”

Ele ouviu, pensou em mandar o guarda à “puta que o pariu”, mas estava entediado demais.

A filha ficava os dois turnos na escola, a mulher só voltava a noite. Comia o que havia deixado pronto do outro dia ou ( freqüentemente) fazia um lanche antes de chegar. Banho. Cama e sono. Fim.

Então era assim. Beliscava o dia todo. Não pelo prazer. Mas para não ter que sentar num restaurante ou lancheria. Odiava sentar para comer nesses lugares. Comprava um “Queque”, odiava “bolo inglês” e um refrigerante. Sentava no mesmo banco da praça e cumpria mais essa função. Se sentisse mais fome. Atravessava a praça e na padaria “Bom Pastel” comia um pastel de queijo. “Vai bem seu Floriano?”

Era esse o momento em que ouvia o seu nome pelo dia. Única vez. Às vezes ia à padaria só para ouvir o próprio nome. Estava desaparecendo. Sabia. Queria dizer isso para alguém. Mas ninguém queria ouvir. Sabia que estava desaparecendo. Seu nome valia um pastel de queijo. Só.

Sentia que o seu “sumimento” estava relacionado com todos os outros. Iguais. Mesmos. Já não fazia diferença. Eram os mesmos.

A mulher já não o distinguia do travesseiro. Para filha era um “Até...”.

Do outro lado da rua. Na frente da padaria, na praça. Lá estava ele, sendo outro. Outro que era ele. Velho. Sentado. Olhos perdidos. Corpo perdido no sem-horário-dever-viver. Outro. Outro-eu. Pensou. E muitos estavam. Iam e vinham.

Na praça o fotógrafo de crianças esperava. Antigo. Antiquado. Na era “das informáticas”, teimava em “tirar” fotos com uma máquina vetusta e um cavalinho de pau. “Senta aqui meu filho...” e o menino chutava o brinquedo e negava-se ao ridículo. A mãe pedia desculpas e “arrastava” a criança e o fotógrafo perdia o dinheiro.

“Uma foto?” perguntava surpreso.

Ele sentou em um banco de madeira oferecido pelo profissional. Pensava que uma foto ia redefini-lo. Identificá-lo novamente. Não estava preparado para a desorganização do corpo, para des-identificação.

“Sorria...” Ele não sorriu. Um flash. Desapareceu.

Por alguns instantes o fotógrafo ficou em silêncio. Olhou para o banco vazio. Para o nada. Pensou...

Sentou novamente e esperou um outro freguês.





IPÊ-AMARELO






Era velho. Então datilografava o texto. Era louco. Então não havia a máquina. E estava só. E as personagens eram reais. Quase. Eram as que caminhavam a sua frente. E as que andavam às suas costas. E as que não via. E as que não lembrava.

O escritório era o banco da praça. Sob a sombra da árvore antiga. Do outro lado era a rua e o inferno. Gostava de assistir o inferno. Relatar o inferno. Descrever o inferno. Na sombra. Era velho. E datilografava o mundo. O seu mundo.

E o inferno era além da praça e da sombra. As latas com rodas que apertavam e esmagavam “confortavelmente” as pessoas. Era também as pedras que solidificavam todos os caminhos. Caminhos que levavam sempre a um mesmo lugar.

Era velho. E adorava a sombra. Morreria quando o levassem dali, quando a filha que já não agüentava suas esquisitices resolvesse “aprisioná-lo” no quarto. “Prefiro a sombra” diria, mas de nada adiantaria. Confinado ao quarto e ao olho vibrante da tv.

Mas agora estava ali. Escrevendo seu livro como fazia todo o dia. Era isso que dizia: “O que o senhor estava fazendo pai?” “Escrevendo.” E se dirigia para o fundo da casa. Sentava na cadeira de praia e olhava as nuvens em metamorfose.

Mas estava, agora, na sombra da tabebuia. Aos pés o amarelo. Cor. Gostava da cor. Mas gostava da cor fora do seu livro, fora do seu texto. O texto devia ser duro. Seco. Mas o amarelo era bonito. E ela. A árvore. Reinava única na praça. O resto de verde. Mas a sombra não. Os sorrisos sim. A grande maioria. O da filha com certeza. Amarelo.

Do outro lado da rua o menino parou. “Me olhou como se fosse – eu – uma criatura de outro planeta. Talvez fosse. Então atravessou a rua e sentou do meu lado. Era da rua. Ou a rua era dele. Com certeza. Era o dono da rua. Da rua e de todas as suas possibilidades. Perguntou meu nome. Olhos que atravessam a imagem e questionavam a alma. Grandes. Minha alma é minúscula. Não falei. Velho. Tenho o medo como elemento de sustentação da vida. Minha vida. Ele sorriu. Sabia que estava me intimidando. Perguntou o que eu fazia. ‘Escrevo’, respondi, ele deu uma gargalhada, quando parou de rir, já outro moleque estava do meu lado. Cercado. ‘Quem é o velhote Língua?’ Língua era o apodo do primeiro. ‘Sei lá, disse, tava me olhando estranho, vim conferir.’ O segundo aproximou o rosto do meu. Olhos claros de ameaçar e intimidar. Os meus eram tão antigos que afogariam os dele. Desviei. Meus olhos são de outros tempos, de fantasmas cheio. O menino nada tem a ver com minhas dores. ‘Fala aí meu velho – e pôs firmemente a mão sobre o meu ombro – Tá fazendo o quê por estas bandas? Não sabe que é perigoso andar sozinho?’ Olhei o céu. Claro. O sol. O amarelo das flores do ipê no chão. Tudo era perigoso. ‘Só estou escrevendo’ falei. O primeiro gargalhou novamente: ‘O velhote é louco, tá variando.’ O segundo já tava metendo a mão no meu bolso. ‘Melhor passar a grana vovô...’ mas eu não era avô de ninguém. Minha filha não queria. Não gostava de crianças. Ele abriu minha carteira; vazia. Levantei, para ir embora, acabar com aquela cena, enfadonha, triste... o primeiro empurrou. Meu corpo morreu no chão. O amarelo das flores como colchão. Um homem correu. Os meninos atiraram. Pela boca. Palavrões que eu nunca me animara proferir em público. E fugiram pelo verde.”

Parou de escrever. Onde estava o homem? A carteira estava no bolso. A roupa limpa. As flores amarelas...

O que era real no texto?

Do outro lado a mãe apanhou a mão do menino e foram. Ele ainda o olhava. Um E.T?

Foi então que ela chegou. A filha. Procurando. No vento que se fazia. Brisa que desarranjava as flores do chão e precipitavam outras da árvore. Ela não via. Não enxergava. Buscava em vão. Olhos que tinham suas raízes na inquietação. Sentou no banco, mão no rosto. Não via. Levantou e saiu. Os corpos não coabitavam os mesmos espaços. Ela não o viu sair. Ele não a viu ficar.

Logo o vento sopraria um lençol de flores amarelas pela memória.

O sol iria dizimando a sombra, clareando e iluminando tudo. Ofuscando. Queimando. E não haveria mais ninguém escrevendo no banco do Ipê-amarelo.