E ela levantaria os olhos para o céu. E a reza estaria neles
– claros grandes, brilhantes... esperançosos – antes das
palavras-resmundos-lamúrias que diria. Mãos vazias para o alto.
Dona Nandinha era uma bruxa. Pelo menos para mim. Guri que
fui. E que na sua presença aprendi o mundo que via, lia e dizia.
Mas era uma daquelas bruxas boa de abraçar. Na flacidez dos
anos e da pele fria. Estranha para mim. Guri de sete anos e com o calor todo do
corpo nas pernas que corriam ruas inteiras. Hoje memória e história.
Vizinha da minha mãe. Mais velha que todos. Antes do médico
era ela que corria para as casas-chá-efusões-xarope-rezas-beijos carinhosos nas
crianças-histórias fantásticas anteriores a qualquer memória.
Pequena. Gordinha. Cabelo crespo. Olhos redondos. Voz grave
e forte. Firmeza nas mãos e nas pequenas pernas que se recusavam a temer ou
respeitar a imposição do tempo.
Uns diziam curandeira, parteira outros. Rezadeira, mais
alguns. Mas de profissão costurava. Com linha construía. Edificava, reformulava
a vida de todos que a circundavam.
Remendava e reconstituía os pedaços de todos nós. Cortava o
que não prestava, cerzia nossas feridas, remendava com cores alegres nossas
dores.
Pela manhã. Cedo. Fazia o mate. Quente como o fogo e ligava
o pequeno rádio. Baixinho cochichava no ouvido da nossa bruxinha as novidades
do mundo e seus perigos. E ela levantava os braços e olhos para o céu e rezava.
Segurava com suas rezas o mundo todo e todo o seu peso. E era feliz.
E era forte a Dona Nandinha. A casa era repleta de bis quis,
vasos de flores e incensos. Retratos pelas paredes em molduras antigas. Guardanapo
bordado na mesa da cozinha e no tampo do fogão. A leitura
Tinha um gato que não era dela. Dizia. Mas comia e dormia na
casa. Godot era o nome. Ela lia. E fazia ler. Às vezes nos pegava na rua e nos
tomava a leitura: Moby Dick, As viagens de Gulliver, Sítio do Pica-Pau, contos
de fadas, as Mil e uma noites...
Na época era um suplício, mas lembro que depois – na rua –
nos gabávamos para os amigos: “Tive que ler dez páginas do livro tal... e o
outro retrucava cheio de segurança e superioridade: Pois faltam dez páginas
para eu ler o livro todo!”
Era uma bruxa sim. E vivíamos envoltos em magia.
Um dia Dona Nandinha morreu. Venderam a casa, os livros e o
gato fugiu. Fugiu para minha casa. Envelheceu lá. Eu com ele. Hoje é lembrança.
Memória mágica.
Ligo o rádio. Os olhos para o céu. Profundo céu de
possibilidades. Estou constrangido... mas levanto as mãos. Busco um pensamento
que se avizinhe de Deus. Faço uma reza resgatada dos confins da minha infância.
Sorrio. A vida é boa. Uma nuvem sorri para mim. Tem a cara
da Dona Nandinha.
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