Todo cão é um bicho. O
homem. Bicho também. Pensou a velha. Sentada na cadeira. Rosto na janela.
Moldura antiga. Vetusta imagem do tempo gravada. Nas rugas que percorriam todas
as carnes que compunham o rosto da velha.
A televisão era a janela. Sempre a janela. E o fora do mundo. O seu.
A rua e sua oferta. Pobre
a rua. Mas proposta. Que recusara há muito. A janela bastava. E os olhos iam
longe. O que não viam criavam. Poderosos olhos de inventar verdades. Que seriam
ou não. Virtualidade latente. A semente
e a árvore. A árvore em estado de vontade de ser.
Velha. Lhe chamavam
carinhosamente. E sorria sempre. Dentes desgastados mas ainda presentes em
sorriso espirituoso e distante. Os parentes eram memória. O marido ausência. A
morte era uma coisa interessante. Pensava. No início magoava, doía. Depois
afagava, acarinhava... não sabia se queria. Estava em dúvida.
Decisão difícil. Viajar
para o distante... sorriu. A janela como moldura. Da rua os olhos outros sempre
viam o mesmo quadro. Até a noite. No escuro. Não saia da janela. O sono não
existia, parecia morte, e ela não tinha decidido.
E era com ela. Ninguém
interferiria. Ela tinha o poder. Na aparente fragilidade, uma força latente pulsava, e era nos olhos
grandes e claros que se mostrava. Olhos de ver tudo. Olhos de devorar tudo. Nem
a noite escondia dela seus segredos. E da janela ela via. Sem medo. Via as
angústias de todos, os medos. Via os fantasmas e segredos que escapavam dos
sonhos e dos tormentos noturnos. Também as fantasias e os terrores, desejos...
e nem ruborizava, acostumada com as coisas humanas dos homens.
Criaturas estranhas
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