NO ESPELHO
Um sorriso que não era; abriu-se triste em rosto indefinido.
Reflexo, imagem, espectro.
O sorriso já não era. Distante até mesmo do seu sarcasmo.
Só o desenho de sua carne refletida em olhos, boca, cabelo e dúvidas.
Imagem. Interpretação.
A mão procura a boca, e no espelho não há textura, espessura, tato.
Lentamente ergue o braço. Ela conseguiu. Fizera o que ninguém mais fizera.
A mão treme. O braço pesa.
No aço do espelho observa o espaço que a resumiu. A redução do corpo. Alguns livros; linhas de fuga, frestas e buracos na estrutura quase hermética do lugar; cadeiras, mesas, quadros – mais linhas de fugas – cada olho, cada rosto remetia a um outro que não ela, deslocamentos possíveis – exercícios necessários...
Ereta confrontando e confrontada por si mesma... e todas as outras que sabia que era, o olho traçava linhas invisíveis que a costurava magicamente ao seu outro. Ao ser outro.
Frente a frente os “eus” de cada uma se observavam. A concretude de uma e a efemeridade da outra... a realidade das duas. Multiplicidades.
A imobilidade de ambas. Metamorfose, simbiose da carne e do reflexo. Da criatura e do criador. Da luz e da sombra. Quem seria a sombra?
Ela conseguiu. Era o que o cérebro aquém do espelho pensava. Possibilidade.
No rosto as rugas em seus entrecruzamentos matemáticos prometiam números elevados. Os cabelos de um preto falecido lembravam infâncias distantes, sonhos...
Pensou na morte do reflexo. De tudo que era reflexo...
Gostaria de tomar um chá. Sentar à mesa de Hatta e Haigha em março e enlouquecer tentando descobrir porque um corvo se parece com uma escrivaninha.
Do outro lado a que não era sorri, grande sorriso único, solitário, zombeteiro sorriso de Cheshire: “Se não sabes para onde vais, qualquer caminho te levará lá”.
Lembrou da menina.
Onde andava Alice?
Ronie Von Rosa Martins
Texto também publicado na minha coluna no "ENTREMENTES - Revista digital de Cultura."
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