segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

A herética língua do poema nu

ESCREVER


Como exercício. Oficina. Malho.
Entortar o aço, dobrar o indobrável. Escrever no suor da gota que me disfaço
Escrever na brancura da folha que ameaça e zomba e mata.
Garimpar letra por letra no cansaço,
Montar a frase com sentido ou além dele
Montar o verbo – selvagem animal
Resistir ao tombo... ou aproveitar
do verbo todos os tombos, deslizes, decaídas,
Empanturrar-se do verbo e vomita-lo furioso no sentido alheio
Gramática ancestral, primeva, a-gramática
Gramática das loucuras profundas.
Erigir o discurso do louco
Confrontar o outro,
O santo,
O são,
O ser.

Produzir o não-discurso. Aquele que sufoca o senso comum,
Aquele que expõe a carne e a pálida textura da brevidade do instante
Perante a gravata e alto salto da gramática ética
A herética língua do poema nu.

Escrever na frincha do que não é dito
Grafar na fresta, no espaço mínimo do piscar...
Pescar da profundeza da pele
A gargalhada rizomática das inconstâncias.

E pedir tradução e interpretação
E exigir ao olho atônito a razoabilidade
E ordenar um sentido

E apagar-se frenético
Espedaçando-se com a borracha.

Ronie Von Rosa Martins

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

NO ESPELHO

NO ESPELHO

Um sorriso que não era; abriu-se triste em rosto indefinido.
Reflexo, imagem, espectro.
O sorriso já não era. Distante até mesmo do seu sarcasmo.
Só o desenho de sua carne refletida em olhos, boca, cabelo e dúvidas.
Imagem. Interpretação.
A mão procura a boca, e no espelho não há textura, espessura, tato.
Lentamente ergue o braço. Ela conseguiu. Fizera o que ninguém mais fizera.
A mão treme. O braço pesa.
No aço do espelho observa o espaço que a resumiu. A redução do corpo. Alguns livros; linhas de fuga, frestas e buracos na estrutura quase hermética do lugar; cadeiras, mesas, quadros – mais linhas de fugas – cada olho, cada rosto remetia a um outro que não ela, deslocamentos possíveis – exercícios necessários...
Ereta confrontando e confrontada por si mesma... e todas as outras que sabia que era, o olho traçava linhas invisíveis que a costurava magicamente ao seu outro. Ao ser outro.
Frente a frente os “eus” de cada uma se observavam. A concretude de uma e a efemeridade da outra... a realidade das duas. Multiplicidades.
A imobilidade de ambas. Metamorfose, simbiose da carne e do reflexo. Da criatura e do criador. Da luz e da sombra. Quem seria a sombra?
Ela conseguiu. Era o que o cérebro aquém do espelho pensava. Possibilidade.
No rosto as rugas em seus entrecruzamentos matemáticos prometiam números elevados. Os cabelos de um preto falecido lembravam infâncias distantes, sonhos...
Pensou na morte do reflexo. De tudo que era reflexo...
Gostaria de tomar um chá. Sentar à mesa de Hatta e Haigha em março e enlouquecer tentando descobrir porque um corvo se parece com uma escrivaninha.
Do outro lado a que não era sorri, grande sorriso único, solitário, zombeteiro sorriso de Cheshire: “Se não sabes para onde vais, qualquer caminho te levará lá”.
Lembrou da menina.
Onde andava Alice?


Ronie Von Rosa Martins

Texto também publicado na minha coluna no "ENTREMENTES - Revista digital de Cultura."

domingo, 3 de janeiro de 2010

Comer: da arte de dizer a comida ao fato de fazê-la ser além da comida; verbo

Colherei o grão da minha angústia
Plantarei árvores de abismos
Raízes distantes em tempo espaço e discursos
Mastigarei-as
Em danças caóticas de peiote e
Explodirei meu corpo em tantos e vários outros
Grãos.

E em cada vão.
Em cada frincha, fresta
Produzir a festa da não-razão
E os loucos todos convidar

A grande festa do meu devaneio; nosso
No fosso raso da minha verve
Redigir em palavra ilegível
Em gramática do delírio
Todo pergaminho que se perde
Na impossibilidade da língua

Com a língua
Lamber salivante a régia flor
Das certezas claras
Lambuzar os corpos
Exatos e enxutos de todo discurso hermético

Herético, dançar nos altares a ingenuidade da história
Beber todos os líquidos sagrados
Devorar na carne toda a carne sacra
Todas as páginas místicas
Palavra por palavra

Pantagruel empanturrado; Artaud explodindo
Corpo e loucura, mente e moral
E alterar o verbo e a verve
O fluxo e o curso
De qualquer, breve
E profundo pensar.


Ronie Von Rosa Martins