"...quando precisa inventar novos conceitos para terras desconhecidas, caem os métodos e as morais, e pensar torna-se, como diz Foucault, um "ato arriscado", uma violência que se exerce primeiro sobre si mesmo." (DELEUZE,Gilles. Conversações.p.128)
quarta-feira, 8 de dezembro de 2010
Publicação - Homem sentado - Jornal Jovem
http://www.jornaljovem.com.br/edicao20/excecao.php Link para o meu texto "Homem sentado" no Jornal Jovem.
Oficina
Ronie Von R. Martins
Tenho em mãos, nada. Nem inspiração nem verbo. Vácuo. Tenho, no entanto, a oficina, o oficio. A folha e a letra. Tenho o risco o traço. E nada basta.
Então chuto, e bato. E quebro. E rasgo.
Mordo a palavra. Arranco todos seus sentidos próprios. Todos os impróprios. É minha a oficina de quebrar palavras.
O meu verbo dança com Artaud no precipício. Com Nietzche assassino todos os monumentos de pedra paternal. Pedaços. Espaços.
Escassos todas as verdades. Não há verdade nem caminhos.
Há, sim, um descascar-se por completo. Bartleby diante do muro cego, letra não dita, não-escrita. Ainda. Longe do sentido em que pisam os pés do comum consenso. Distante da linha que abriga os ecos e restos de qualquer tradição.
Na oficina me transmuto em letra. Em pedaço de letra. Em farelo de letra. Em uma não-letra. Aquela que virá com o povo que ainda há de vir. Devir. Letra-devir.
Letra de ouvir. Letra de comer com gosto e fome. Letra de embriagar, de embebedar a carne toda. Letra-sexo, letra-cântico de sereia nua. Crua. Letra em língua de louco que profere, desfere, em reunião pagã, vocábulos de mágica herança. Profundas rezas por veredas ainda não penetradas, perpetuadas, petrificadas pelo olho tolo do interpretador geral. O olho reto e correto do resumidor, do consumidor de arestas, nuanças, pontas, frestas.
- não ao emparelhador, ao pedreiro certeiro das paredes úmidas.
- não ao verbo disciplinador do poema funcionário público.
Em minha oficina. Em minha casa de louco. Em minha folha, em meu texto torto, quebro com marreta e fúria a palavra-pedra-dura. A palavra-pele-tua. E te exponho. E me exponho ao espelho cego.
Não entendes? Pretendes?
Uma idéia clara? Uma idéia morta.
Tenho em mãos, nada. Nem inspiração nem verbo. Vácuo. Tenho, no entanto, a oficina, o oficio. A folha e a letra. Tenho o risco o traço. E nada basta.
Então chuto, e bato. E quebro. E rasgo.
Mordo a palavra. Arranco todos seus sentidos próprios. Todos os impróprios. É minha a oficina de quebrar palavras.
O meu verbo dança com Artaud no precipício. Com Nietzche assassino todos os monumentos de pedra paternal. Pedaços. Espaços.
Escassos todas as verdades. Não há verdade nem caminhos.
Há, sim, um descascar-se por completo. Bartleby diante do muro cego, letra não dita, não-escrita. Ainda. Longe do sentido em que pisam os pés do comum consenso. Distante da linha que abriga os ecos e restos de qualquer tradição.
Na oficina me transmuto em letra. Em pedaço de letra. Em farelo de letra. Em uma não-letra. Aquela que virá com o povo que ainda há de vir. Devir. Letra-devir.
Letra de ouvir. Letra de comer com gosto e fome. Letra de embriagar, de embebedar a carne toda. Letra-sexo, letra-cântico de sereia nua. Crua. Letra em língua de louco que profere, desfere, em reunião pagã, vocábulos de mágica herança. Profundas rezas por veredas ainda não penetradas, perpetuadas, petrificadas pelo olho tolo do interpretador geral. O olho reto e correto do resumidor, do consumidor de arestas, nuanças, pontas, frestas.
- não ao emparelhador, ao pedreiro certeiro das paredes úmidas.
- não ao verbo disciplinador do poema funcionário público.
Em minha oficina. Em minha casa de louco. Em minha folha, em meu texto torto, quebro com marreta e fúria a palavra-pedra-dura. A palavra-pele-tua. E te exponho. E me exponho ao espelho cego.
Não entendes? Pretendes?
Uma idéia clara? Uma idéia morta.
Através da garrafa plástica
Ronie Von Rosa Martins
A garrafa pet de água gelada. A travessa de xícaras e o açucareiro. Possibilidades.
A mesa azul e as cadeiras estofadas ao redor. Ao redor todo o silêncio, toda a mordaça do argumento.
E os espaços que se fazem a cada passo dos corpos que se afastam nas proximidades perdidas.
A televisão que observa o mundo através de boca escura, dentes que devoram a imaginação e a imagem em sombra que lá fica. No fundo.
Escrivaninhas que põem suas línguas-gavetas em abusadas caretas de papel e desordem. Outras tão vazias que assustam.
As janelas e seus tapa-olhos coloridos e desbotados pelo sol que agora era a lua. E além da lua minhas palavras. Verbos em cantoria ritualística. Mantra de ausência e presença. Espaços de um devir.
Meu corpo que pela janela não vai, nem salta nem morre. Porém não vive nem grita.
Na perna a corrente funcional e o número. Público serviço a que me presto. Perco-me em tão inusitado estado de apatia. Corpo variante e vago pelo limbo.
Sujeitar o pé no traço de um caminho ido e gasto. Farto.
Parto que se faz diário.
A ordem das classes predispõe noções de antigos e tradicionais regimes. Lembranças do discurso e da palavra de ordem. Imposições dos corpos. Disposições dos corpos. Enfileiramento de memórias, de sonhos, de anseios. Fila. Filamento de imaginação que se tenta domesticar. Adestradores frustrados.
O grande fracasso refletido na xícara transparente. Os discursos são facas. Cortam os comportamentos, definem os pensares. Pensar?
A água já não está tão gelada. Nada mais é tão, ou muito. Tudo é mais ou menos. Tudo é médio. Medíocre.
Será possível se viver na e só na palavra? Minha esperança. Produzir meu suor e meu prazer na palavra. Desistir do corpo escravo. A palavra não é? Minha palavra não é escrava? Do meu corpo e do que o define e circunda?
Na garrafa a água me observa. Ela é o sujeito. Eu, apenas o objeto. Inversão. O corpo abre o espaço dos braços. A mão o dos dedos. E presa esta a garrafa. Já sem a tampa despejo a água.
Água que na terra descobre sempre as melhores brechas. Não há elemento que melhor saiba descobrir seus caminhos. Poucas barreiras. A água. Pelos interstícios das coisas sempre encontra seu corpo. Seus corpos. Ou cada gota já é um corpo? Sem órgãos.
Tampo novamente a garrafa. Prendo todas frustrações. E sobre a mesa observo. O silêncio. A transparência do meu nada. Estará meu espírito na garrafa? Gênio?
Garrafa de plástico.
A garrafa pet de água gelada. A travessa de xícaras e o açucareiro. Possibilidades.
A mesa azul e as cadeiras estofadas ao redor. Ao redor todo o silêncio, toda a mordaça do argumento.
E os espaços que se fazem a cada passo dos corpos que se afastam nas proximidades perdidas.
A televisão que observa o mundo através de boca escura, dentes que devoram a imaginação e a imagem em sombra que lá fica. No fundo.
Escrivaninhas que põem suas línguas-gavetas em abusadas caretas de papel e desordem. Outras tão vazias que assustam.
As janelas e seus tapa-olhos coloridos e desbotados pelo sol que agora era a lua. E além da lua minhas palavras. Verbos em cantoria ritualística. Mantra de ausência e presença. Espaços de um devir.
Meu corpo que pela janela não vai, nem salta nem morre. Porém não vive nem grita.
Na perna a corrente funcional e o número. Público serviço a que me presto. Perco-me em tão inusitado estado de apatia. Corpo variante e vago pelo limbo.
Sujeitar o pé no traço de um caminho ido e gasto. Farto.
Parto que se faz diário.
A ordem das classes predispõe noções de antigos e tradicionais regimes. Lembranças do discurso e da palavra de ordem. Imposições dos corpos. Disposições dos corpos. Enfileiramento de memórias, de sonhos, de anseios. Fila. Filamento de imaginação que se tenta domesticar. Adestradores frustrados.
O grande fracasso refletido na xícara transparente. Os discursos são facas. Cortam os comportamentos, definem os pensares. Pensar?
A água já não está tão gelada. Nada mais é tão, ou muito. Tudo é mais ou menos. Tudo é médio. Medíocre.
Será possível se viver na e só na palavra? Minha esperança. Produzir meu suor e meu prazer na palavra. Desistir do corpo escravo. A palavra não é? Minha palavra não é escrava? Do meu corpo e do que o define e circunda?
Na garrafa a água me observa. Ela é o sujeito. Eu, apenas o objeto. Inversão. O corpo abre o espaço dos braços. A mão o dos dedos. E presa esta a garrafa. Já sem a tampa despejo a água.
Água que na terra descobre sempre as melhores brechas. Não há elemento que melhor saiba descobrir seus caminhos. Poucas barreiras. A água. Pelos interstícios das coisas sempre encontra seu corpo. Seus corpos. Ou cada gota já é um corpo? Sem órgãos.
Tampo novamente a garrafa. Prendo todas frustrações. E sobre a mesa observo. O silêncio. A transparência do meu nada. Estará meu espírito na garrafa? Gênio?
Garrafa de plástico.
Ruas (1)
Ronie Martins
Um carro. Mais. Outro carro. Tantos. Pessoas várias. Uma. Duas. Todas. Rua. Uma e muitas. Intersecção. Curvas. Becos. Olhos. Dois. Diversos. Um silêncio; não. O som. O barulho, o ruído. Burburinho. Passos, pássaros? Improvável. Tolerável o contato. Corpo. Corpos. Desvios, choques. Odores. Suores. Braços. Movimentos... segmentos.
Movimento e pausa. Continuidade. Continuação. O contínuo da ação. A palavra. Na boca. Na placa. No rádio. O discurso. A intenção. A sujeição. A imposição. O vidro e o cimento. Túmulo? Da donzela? Do conto das antigas fadas?
Vitrine. Desejo e consumação. Angústia. Inveja. Prazer e frustração. Cansaços em degrade. Desilusão em várias nuance. Velocidade. Objetivo.
Chegar. Ir e chegar... se der voltar...
Voltar da rua. Dos caminhos tantos que não são nossos e também o são.
O cão que perambula. O olfato atento. O homem, o flato nauseabundo. O odor do corpo e da rua. O corpo da rua e seu odor. A dor da rua e sua náusea. O cão.
Pela mão a menina. Preso o corpo. A imaginação flutuante. Devora vitrines. Brinquedos e roupas, doces e salgados. Sonhos. Os sonhos da rua devoram-nos. Todos.
Caminhar. Uma perna após a outra. Mover todas as instancias da carne. Produzir o movimento...
Ir...
Vir...
Na rua que se perde sob os pés e cabeças e corpos e odores e presentes e dívidas e sorrisos e tristezas o pássaro voa. Distante. Há silêncio nas alturas de sua rua?
Vastas e escassas carnes desfilam seus panos. Coloridos e estigmatizados com suas grifes. Estimativas de um valor hipotético. Virtual?
Ondulantes carnes se oferecem, outras agridem, afrontam, zombam. Outras, sentadas em propícios ambientes, devoram cadáveres alegremente e bebem água, refrigerantes, café, cerveja e cachaça. Sóbrios começam a caminhada, alguns corpos... ébrios e tontos chegam... ou nunca.
A rua é língua. Lascívia. Um olho que passa encontra outro e se encontram os corpos e se aproximam as vidas e se edificam histórias e memórias e famílias e lendas e mais corpos... para a rua.
Entro no ônibus e fecho os olhos. Vou.
Um carro. Mais. Outro carro. Tantos. Pessoas várias. Uma. Duas. Todas. Rua. Uma e muitas. Intersecção. Curvas. Becos. Olhos. Dois. Diversos. Um silêncio; não. O som. O barulho, o ruído. Burburinho. Passos, pássaros? Improvável. Tolerável o contato. Corpo. Corpos. Desvios, choques. Odores. Suores. Braços. Movimentos... segmentos.
Movimento e pausa. Continuidade. Continuação. O contínuo da ação. A palavra. Na boca. Na placa. No rádio. O discurso. A intenção. A sujeição. A imposição. O vidro e o cimento. Túmulo? Da donzela? Do conto das antigas fadas?
Vitrine. Desejo e consumação. Angústia. Inveja. Prazer e frustração. Cansaços em degrade. Desilusão em várias nuance. Velocidade. Objetivo.
Chegar. Ir e chegar... se der voltar...
Voltar da rua. Dos caminhos tantos que não são nossos e também o são.
O cão que perambula. O olfato atento. O homem, o flato nauseabundo. O odor do corpo e da rua. O corpo da rua e seu odor. A dor da rua e sua náusea. O cão.
Pela mão a menina. Preso o corpo. A imaginação flutuante. Devora vitrines. Brinquedos e roupas, doces e salgados. Sonhos. Os sonhos da rua devoram-nos. Todos.
Caminhar. Uma perna após a outra. Mover todas as instancias da carne. Produzir o movimento...
Ir...
Vir...
Na rua que se perde sob os pés e cabeças e corpos e odores e presentes e dívidas e sorrisos e tristezas o pássaro voa. Distante. Há silêncio nas alturas de sua rua?
Vastas e escassas carnes desfilam seus panos. Coloridos e estigmatizados com suas grifes. Estimativas de um valor hipotético. Virtual?
Ondulantes carnes se oferecem, outras agridem, afrontam, zombam. Outras, sentadas em propícios ambientes, devoram cadáveres alegremente e bebem água, refrigerantes, café, cerveja e cachaça. Sóbrios começam a caminhada, alguns corpos... ébrios e tontos chegam... ou nunca.
A rua é língua. Lascívia. Um olho que passa encontra outro e se encontram os corpos e se aproximam as vidas e se edificam histórias e memórias e famílias e lendas e mais corpos... para a rua.
Entro no ônibus e fecho os olhos. Vou.
Um beijo
Ronie Von Rosa Martins
Responder qualquer pergunta é um martírio. As respostas sempre serão evasivas. Por mais exatas que sejam. Ilusão da pergunta. Uma pergunta jamais terá uma resposta. Sempre uma proximidade distante. Uma zona de avizinhamento, um ter a ver. Uma pergunta é feita sempre sem se esperar a resposta. A pergunta é para marcar o espaço. Para perceber o olho outro, as expressões faciais das possíveis respostas.
Uma pergunta é uma facada. Corte sem possibilidade de cicatrização. Uma pergunta é espaço vago que te come e devora em dentes, sentidos e aproximações.
- Você me ama?
Clássica. Romanesca. Fílmica. Teatral. A fatídica pergunta. Dardo exigindo um coração. Espetá-lo. Atravessá-lo.
Eis o momento da resposta. A busca das palavras. A concatenação da frase.
Amar?
O que é amar. De que forma amar? Intensidade? Não amar?
Os olhos perguntam mais que a boca. A boca exige mais que as palavras. Estas são vagas, soltas. Falta-lhes a força, a veemência.
- Você me ama?
É o silêncio dos olhos que perguntam. Exigem uma resposta além da esperança. Da suspeita.
Amar o corpo. E o calor singular da carne. Amar o toque, o contato. Amar o beijo. Amar.
O que é o amor? Amas a presença, o outro? Sendo este outro? Ou amas no outro o que este não é e desejas? Amar.
Desejas a fala e a voz e a idéia, assim como o rosto, a boca e o sexo?
Amas o outro no que este é ou no que gostarias que fosse?
O ambiente conspira contra mim. Silencioso. As paredes pesadamente respiram sua pressão, impressão sobre meu discurso. Comprimem meu verbo, ordenam a verbal construção. A flor no vaso torce o rosto e me olha. Seu perfume funesto me sufoca. O que é o amor além de um ponto de interrogação?
No peito dela. Um coração aflito já não se aguenta, e é visível o sofrimento. Os olhos umedecem. Lágrimas?
Sim. O amor também é lágrima.
O rosto é belo. O corpo. Mas o verbo? Os verbos são afins? As palavras lavram o mesmo terreno, cantam o mesmo verso, declamam o mesmo poema?
Mas... há necessidade disso? A semelhança será exigida. Sempre. Será amor? Mas e a diferença? Não?
A cantora do rádio silenciou. Também ela, curiosa, espera minha resposta. Minha palavra é silêncio. O discurso é volátil, etéreo. As palavras não dizem.
-Não me amas?
A lágrima despenca derradeira por rosto que se transforma em dor e angústia.
Como não amar? Dizer que não se ama é impossível. Declarar o não-amor é tão tolo como declarar o amor.
O problema do amor é a intensidade desejada. Sempre esperam uma intensidade maior que a que oferecemos. Quero que me ames assim... mas sendo assim não será o meu amor... será o teu. Esta é a intensidade tua, não minha.
Te amo. Mas não como precisas. Não como desejas. Amo teu nome, teu corpo. Tua presença. Amo. Mas amo as letras, os livros, as lendas, as traças. Amo a poesia, o verbo. Amo também o álcool, amo a noite. Os bares. As mulheres. Amo a insensatez do meu discurso.
Amo os cães da rua. Até as pulgas destes cães eu amo. Cada uma com seu universo puro. Seu mundo seguro.
Te amar? Por Deus... te amo como amo minha sombra ao pé. Amo como a sensação da água que molha o corpo. Amo sim. Mas não te amo.
Não te amo como a única. Não te amo como prisão nem posse. Não te amo em casa e lar e família e televisão e cama e programa de domingo. Não.
Não te amo em véu e grinalda. Não te amo em banalidades domésticas.
Sinto. Sinto.
Amo tua ausência. Amo tua imagem indo. Amo tua lágrima salgada. Amo tua dor e a minha. Amo teu nome. ..Te amo neste espaço em que não estas. Amo de tal forma teu desejo de amor que liberto-te para encontrá-lo em outro corpo, verbo e oração.
Um beijo.
Responder qualquer pergunta é um martírio. As respostas sempre serão evasivas. Por mais exatas que sejam. Ilusão da pergunta. Uma pergunta jamais terá uma resposta. Sempre uma proximidade distante. Uma zona de avizinhamento, um ter a ver. Uma pergunta é feita sempre sem se esperar a resposta. A pergunta é para marcar o espaço. Para perceber o olho outro, as expressões faciais das possíveis respostas.
Uma pergunta é uma facada. Corte sem possibilidade de cicatrização. Uma pergunta é espaço vago que te come e devora em dentes, sentidos e aproximações.
- Você me ama?
Clássica. Romanesca. Fílmica. Teatral. A fatídica pergunta. Dardo exigindo um coração. Espetá-lo. Atravessá-lo.
Eis o momento da resposta. A busca das palavras. A concatenação da frase.
Amar?
O que é amar. De que forma amar? Intensidade? Não amar?
Os olhos perguntam mais que a boca. A boca exige mais que as palavras. Estas são vagas, soltas. Falta-lhes a força, a veemência.
- Você me ama?
É o silêncio dos olhos que perguntam. Exigem uma resposta além da esperança. Da suspeita.
Amar o corpo. E o calor singular da carne. Amar o toque, o contato. Amar o beijo. Amar.
O que é o amor? Amas a presença, o outro? Sendo este outro? Ou amas no outro o que este não é e desejas? Amar.
Desejas a fala e a voz e a idéia, assim como o rosto, a boca e o sexo?
Amas o outro no que este é ou no que gostarias que fosse?
O ambiente conspira contra mim. Silencioso. As paredes pesadamente respiram sua pressão, impressão sobre meu discurso. Comprimem meu verbo, ordenam a verbal construção. A flor no vaso torce o rosto e me olha. Seu perfume funesto me sufoca. O que é o amor além de um ponto de interrogação?
No peito dela. Um coração aflito já não se aguenta, e é visível o sofrimento. Os olhos umedecem. Lágrimas?
Sim. O amor também é lágrima.
O rosto é belo. O corpo. Mas o verbo? Os verbos são afins? As palavras lavram o mesmo terreno, cantam o mesmo verso, declamam o mesmo poema?
Mas... há necessidade disso? A semelhança será exigida. Sempre. Será amor? Mas e a diferença? Não?
A cantora do rádio silenciou. Também ela, curiosa, espera minha resposta. Minha palavra é silêncio. O discurso é volátil, etéreo. As palavras não dizem.
-Não me amas?
A lágrima despenca derradeira por rosto que se transforma em dor e angústia.
Como não amar? Dizer que não se ama é impossível. Declarar o não-amor é tão tolo como declarar o amor.
O problema do amor é a intensidade desejada. Sempre esperam uma intensidade maior que a que oferecemos. Quero que me ames assim... mas sendo assim não será o meu amor... será o teu. Esta é a intensidade tua, não minha.
Te amo. Mas não como precisas. Não como desejas. Amo teu nome, teu corpo. Tua presença. Amo. Mas amo as letras, os livros, as lendas, as traças. Amo a poesia, o verbo. Amo também o álcool, amo a noite. Os bares. As mulheres. Amo a insensatez do meu discurso.
Amo os cães da rua. Até as pulgas destes cães eu amo. Cada uma com seu universo puro. Seu mundo seguro.
Te amar? Por Deus... te amo como amo minha sombra ao pé. Amo como a sensação da água que molha o corpo. Amo sim. Mas não te amo.
Não te amo como a única. Não te amo como prisão nem posse. Não te amo em casa e lar e família e televisão e cama e programa de domingo. Não.
Não te amo em véu e grinalda. Não te amo em banalidades domésticas.
Sinto. Sinto.
Amo tua ausência. Amo tua imagem indo. Amo tua lágrima salgada. Amo tua dor e a minha. Amo teu nome. ..Te amo neste espaço em que não estas. Amo de tal forma teu desejo de amor que liberto-te para encontrá-lo em outro corpo, verbo e oração.
Um beijo.
domingo, 19 de setembro de 2010
MEMÓRIAS
MEMÓRIAS
Ronie Von Rosa Martins
Era linda. Mais que podia esperar ou desejar. Um problema só impedia toda a felicidade do menino. Era invisível para ela.
Incrivelmente não conseguia ser notado pelos olhos amendoados e puxadinhos da Isadora – a menina mais bonita da classe. Era o que todos os garotos da escola diziam. E ele concordava.
Nas aulas de geografia, enquanto a professora Ilma, senhora de ar grave e poucas conversas explicava sobre os rios e relevos, Ivinho só pensava na menina. Imaginação cheia de batimentos cardíacos, salivas que se desgrudavam da boca, olhos lânguidos de perdição e flutuação. Piada dos colegas.
Ivinho era desses caras que todo mundo zomba. Bom de zombar. Bom de dar cascudo. O pessoal se reunia, agarrava o coitado e toma cascudo e chute na bunda.
Ivinho era uma figura. Não chorava. Até dava uns coices. Mas era pequeno. Menor que a maioria. Mas era durão. Levava cascudo com dignidade. Olhava no olho do agressor. Davam mais cascudo. O coitado saia de cabeça quente. A gurizada não dizia. Mas saiam com os dedos esfolados também. Ninguém se entregava.
O pai do Ivinho era funcionário da prefeitura, a mãe era dona de casa. E ele, o Ivinho não era dono de nada. Pobres. Mas a turma não tinha dó. Criança é bucha, ninguém quer saber sobre a dor alheia; tudo é diversão. E a diversão é fronteiriça à crueldade.
Às vezes a gurizada atirava os cadernos do Ivinho na valeta que circundava o terreno da venda do Tião Bola murcha – O cara fizera de tudo para aparecer no Fantástico, contratara até um cinegrafista, tentara encenar lances ridículos, mas não conseguiu aparecer na TV. Pelo menos na vizinhança ficou conhecido. Pois é. A gurizada era terrível. Certa vez agarraram o coitado do menino, arrancaram os tênis – velhos e chulepentos e colocaram no vaso do banheiro feminino. Ivinho até pensou em chorar. Mão não fez. Correu até o banheiro, enfiou a mão no vaso e tirou os tênis. Uma menina que saia do banheiro fez escândalo. Lá foi o Ivinho pra secretaria. Explicação, pais, ameaças de suspensão e essas coisas.
Todos riam e troçavam. Menos Isadora. Impassível e indiferente. Ivinho não era nada. Ou melhor, era nada. Na aula, os olhos dela estavam sempre repletos de brilho e beleza. Feitiçaria que encantava e controlava os humores da mulecada. Dizem que certa vez o Índio, menino da oitava série, enfeitiçado pelos olhos da Isadora, roubou a caneta de ouro do professor Inácio Cerqueira. “Prova de amor” dizem que disse na reunião em que o expulsaram da escola.
Dizem que chorava muito. E gritava o nome da menina. Ela nem “aí”, indiferente como o tempo. ...o tempo é indiferente?
Mas não vão pensar que o Ivinho era um santinho e essas coisas. Guri criado nas agruras e diversidades que a carência engendra, sabia se vingar. E respondia à altura.
Contam que uma vez, depois daquela história dos tênis, o menino armado de um “bodoque” e uma sacola de pedras esperou o carro do pai do Ildemarzinho do Banco estacionar na frente da oficina do Seu Ícaro. Escondido nos arbustos e árvores que circundavam a oficina; arrebentou o referido carro a pedradas. Foi um inferno. Deu polícia, juizado na escola. Seu Ildemar pai, o do Banco, com grande influência tentou expulsar o guri da escola. Má influência dizia. Só que ninguém podia provar que fora ele. O danado não deixou ninguém vê-lo. Dizem que queimou o bodoque. Quando o carro da polícia chegou na sua casa, tava brincando na amoreira, boca rocha, sorriso idióta. Todo mundo sabia que fora ele. Mas como provar? Dizem que o Seu Ítalo não quis procurar a bicicleta do menino. Alegam até que o brigada achou graça e disse que era bem feito “para aquele bundinha” mas isso não se sabe nem se pode provar.
O que se sabe é que o ódio dos garotos contra o Ivinho aumentou consideravelmente. Mas o guri era bom estudante. Coisa que a maioria não era. Os anos passaram. Tudo mudou, alguns de nós foram embora, outros o tempo comeu, a Isadora casou com o Ildemarzinho, embarangou e agora é traída sistemáticamente pelo cara. Ela nem liga. Tem casa grande, carro na garagem, cartão de crédito, roupas bonitas e festa para ir. Não tem muitos amigos. Ela nem liga.
Eu sou professor na escola em que o Ivinho estudou. Ele se formou, fez faculdade, mestrado, doutorado, dizem que está na Europa, que manda dinheiro para os pais. Casou com uma loira fenomenal. Professora de Linguística da Universidade de São Paulo. Ivinho escreve livros, artigos e qualquer coisa que se use letras. É famoso. Conceituado. Às vezes vem visitar os pais. Carrão, bem vestido, cheio da grana. Mas não é esnobe. Pelo contrário, nos olhos trás alguma coisa de simpatia para com a cidade e as pessoas daqui.
As pessoas daqui não gostam do Ivinho. Fazem cara de nojo e essas coisas de gente despeitada. Ele não liga. Gosta da gente.
Na época de guri eu queria ser amigo dele. Mas não tive coragem. Queria ajudar. Mas era muito covarde. Quando dava o meu cascudo na cabeça dele, não forçava. Só fazia cena. Acho que ele percebia.
Na verdade eu simpatizava muito com o cara. Esse texto é uma espécie de desabafo e um pedido de desculpas.
O Ivinho não era o Ivinho, era outro, e nenhum dos nomes corresponde à realidade – se é que podemos definir o real – respeito ao pessoal.
Estes dias encontrei em um açougue no centro da cidade o Ivanir Marreta, tinha uma mão enorme, quebarava tijolo a soco. Era o mais temido de todos, e o que mais judiava do Ivinho.
Conversando sobre o passado ele me saiu com esta:
“..e tu lembra do Ivinho, o baixinho? Sabe que eu até gostava do guri!”
DESMORONOU O CÉU E ELE RIU
DESMOROU O CÉU E ELE RIU
Ronie Von Rosa Martins
Ronie Von Rosa Martins
Desmoronou o céu e ele riu. Bocas graves e troantes anunciaram a água. Abundancia. Jorros, fluxos, rios. Massa de água que tudo envolvia, cobria, lavava. Todos os demônios escorraçados. Santa a água. Benta. E os braços aos céus agradeciam. Costumava agradecer. Mesmo constituindo-se da mais irremediável revolta; não esquecia de agradecer. O dia, a noite, a vida. Às vezes até as dores e fúrias.
E hoje estava ali. Rua deserta de corpos que não ficavam. Corpos que não aceitavam a água. Refugiados. Filhos dos lugares secos. Enxutos. Seguros. No entanto ele como sempre se recusava a aceitar os refúgios. Alguns achavam que era doente. “Louco” declaravam. “Da Silva”, complementavam os mais velhos. As crianças riam e às vezes até judiavam. Pedras, paus, e palavras mais agudas e pesadas-cortantes verbos infantes, carregados dos preconceitos dos pais. Estes puxavam as crianças para dentro das casas secas. Enxutos.
Mas ele estava molhado. Sempre vazando sua liquidez irracional. Suas inconveniências sociais. Insistia em colocar o espaço do seu corpo no espaço dos outros corpos normais. E causava com isso embaraços nada agradáveis para a cidade.
Neste dia, munido do discurso da des-razão, Braulino Junqueira resolveu declamar sua revolta em forma de dança. O corpo no movimento da dor e da ausência de voz. Da voz que se ouve e encanta, e escuta e acata e entende e aceita. Braulino não tinha voz. Sua gramática era motivo de riso e escárnio. A voz de Braulino não era ouvida. Renegada. Excluída. E seus murmúrios ancestrais, que das profundezas mais antigas de todos os ecos pretendiam a comunicação. Relação. Comunhão. Mas a sacra língua oficial, o politicamente correto-escorreito idioma-senhor-patrão-discursocial-grafia-fala, padrão, modelo em zombaria afinada-refinado desdém, reduzia a expressão de Braulino em cômica e ridícula piada.
Mas ele.Braulino Junqueira não era piada. A seriedade abissal. Corpo e som provenientes de espaços ainda não arrazoados pela prosaica sanidade de qualquer daqueles homens enxutos.
E enquanto a chuva varria o mundo com sua água. Purificação? Batismo? O corpo de Braulino, como que movido pelo ritmo do berro de mil gargantas consumia os espaços em movimentos bruscos e estranhamente assustadores.
Verbo que se fazia corpo. Corpo que se fazia verbo em músculo e torção, distorção, contorção de toda verdade posta-imposta-proposta. E o corpo era o discurso. No percurso da própria dor do músculo. Do impulso do grito do nervo e sua distensão. Mão em cinco dedos profundos, mago em ritual soturno. Poeta em carne e osso e pele. Poema de corpo e face. Rosto que se desfaz. Criação de outros tantos. Máscaras todas da possibilidade da face. E o rio que se despeja. E o afogamento. Naufrágio de toda constituição do sujeito. Sujeito explodindo-implodindo toda ilusão do corpo e da mente. Toda a ilusão do Ser homem. Dança-balé. Delírio da carne. Sexo explícito entre o sentido e a imagem. Imagem e vocábulo não dito. Maldito espetáculo de redução e aumento do corpo, envergaduras, alcances e dobramentos. Plástica magia de corpos que transitam no mesmo corpo. Desorganização, desorientação.
E no barro que a água apaga, círculos, riscos, vocábulos. Grafia dos abismos que assombram todos os homens, todos os corpos, todas as carnes que se compõem.
Largos passos. Piruetas tresloucadas. Agachamentos, tombos, mergulhos, gritos. Uivos. Raios elétricos, epiléticos, dialéticos.
E o mundo fechou-se em obscuridade. Todos os olhos recusaram. A grande recusa. E os teatros todas as portas cerraram. E apedrejaram e acusaram. Não mais a chuva. Impropérios e injúrias. Fúria em ancestrais conjunturas. Medo em tijolo e massa. Estruturas de reclusão, afastamento. Exclusão, expurgo. Enxotar o louco e sua dança. Seu rito e seu verbo. Sua imoralidade corporal sua carne, face e presença. Apagar a loucura. O corpo e a escritura.
Queimem a criatura da chuva! Gritavam todos os enxutos. E em deliberado movimento de linchamento, todos os braços, todas as mão e todos os olhos o corpo do louco abraçaram. Preção violência e raiva.
E na chuva que esmorecia, em óleo e fogo que se fazia, o corpo de Braulino Junqueira ardia.
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