domingo, 19 de setembro de 2010

DESMORONOU O CÉU E ELE RIU

DESMOROU O CÉU E ELE RIU


Ronie Von Rosa Martins





Desmoronou o céu e ele riu. Bocas graves e troantes anunciaram a água. Abundancia. Jorros, fluxos, rios. Massa de água que tudo envolvia, cobria, lavava. Todos os demônios escorraçados. Santa a água. Benta. E os braços aos céus agradeciam. Costumava agradecer. Mesmo constituindo-se da mais irremediável revolta; não esquecia de agradecer. O dia, a noite, a vida. Às vezes até as dores e fúrias.

E hoje estava ali. Rua deserta de corpos que não ficavam. Corpos que não aceitavam a água. Refugiados. Filhos dos lugares secos. Enxutos. Seguros. No entanto ele como sempre se recusava a aceitar os refúgios. Alguns achavam que era doente. “Louco” declaravam. “Da Silva”, complementavam os mais velhos. As crianças riam e às vezes até judiavam. Pedras, paus, e palavras mais agudas e pesadas-cortantes verbos infantes, carregados dos preconceitos dos pais. Estes puxavam as crianças para dentro das casas secas. Enxutos.

Mas ele estava molhado. Sempre vazando sua liquidez irracional. Suas inconveniências sociais. Insistia em colocar o espaço do seu corpo no espaço dos outros corpos normais. E causava com isso embaraços nada agradáveis para a cidade.

Neste dia, munido do discurso da des-razão, Braulino Junqueira resolveu declamar sua revolta em forma de dança. O corpo no movimento da dor e da ausência de voz. Da voz que se ouve e encanta, e escuta e acata e entende e aceita. Braulino não tinha voz. Sua gramática era motivo de riso e escárnio. A voz de Braulino não era ouvida. Renegada. Excluída. E seus murmúrios ancestrais, que das profundezas mais antigas de todos os ecos pretendiam a comunicação. Relação. Comunhão. Mas a sacra língua oficial, o politicamente correto-escorreito idioma-senhor-patrão-discursocial-grafia-fala, padrão, modelo em zombaria afinada-refinado desdém, reduzia a expressão de Braulino em cômica e ridícula piada.



Mas ele.Braulino Junqueira não era piada. A seriedade abissal. Corpo e som provenientes de espaços ainda não arrazoados pela prosaica sanidade de qualquer daqueles homens enxutos.

E enquanto a chuva varria o mundo com sua água. Purificação? Batismo? O corpo de Braulino, como que movido pelo ritmo do berro de mil gargantas consumia os espaços em movimentos bruscos e estranhamente assustadores.

Verbo que se fazia corpo. Corpo que se fazia verbo em músculo e torção, distorção, contorção de toda verdade posta-imposta-proposta. E o corpo era o discurso. No percurso da própria dor do músculo. Do impulso do grito do nervo e sua distensão. Mão em cinco dedos profundos, mago em ritual soturno. Poeta em carne e osso e pele. Poema de corpo e face. Rosto que se desfaz. Criação de outros tantos. Máscaras todas da possibilidade da face. E o rio que se despeja. E o afogamento. Naufrágio de toda constituição do sujeito. Sujeito explodindo-implodindo toda ilusão do corpo e da mente. Toda a ilusão do Ser homem. Dança-balé. Delírio da carne. Sexo explícito entre o sentido e a imagem. Imagem e vocábulo não dito. Maldito espetáculo de redução e aumento do corpo, envergaduras, alcances e dobramentos. Plástica magia de corpos que transitam no mesmo corpo. Desorganização, desorientação.

E no barro que a água apaga, círculos, riscos, vocábulos. Grafia dos abismos que assombram todos os homens, todos os corpos, todas as carnes que se compõem.

Largos passos. Piruetas tresloucadas. Agachamentos, tombos, mergulhos, gritos. Uivos. Raios elétricos, epiléticos, dialéticos.

E o mundo fechou-se em obscuridade. Todos os olhos recusaram. A grande recusa. E os teatros todas as portas cerraram. E apedrejaram e acusaram. Não mais a chuva. Impropérios e injúrias. Fúria em ancestrais conjunturas. Medo em tijolo e massa. Estruturas de reclusão, afastamento. Exclusão, expurgo. Enxotar o louco e sua dança. Seu rito e seu verbo. Sua imoralidade corporal sua carne, face e presença. Apagar a loucura. O corpo e a escritura.

Queimem a criatura da chuva! Gritavam todos os enxutos. E em deliberado movimento de linchamento, todos os braços, todas as mão e todos os olhos o corpo do louco abraçaram. Preção violência e raiva.

E na chuva que esmorecia, em óleo e fogo que se fazia, o corpo de Braulino Junqueira ardia.

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