domingo, 21 de março de 2010

Moby


MOBY


Ronie Von Rosa Martins





Abriu um olho-claridade, brilho, luz-piscou uma, duas-três, várias vezes ligou e desligou o mundo. O outro.

Aberta as janelas, fronteiras entre o sono e o despertar, talvez entre a morte e a vida, pensou... (ultimamente pensava demais.)

Precisava levantar- “levanta filho da puta, levanta vagabundo.” – ouvia os quase inaudíveis insultos que o cérebro – entidade funcionário público – gritava. O corpanzil velho gordo e suado lascivamente afundado qual Titanic ou Pequod em um mar de cobertas também velhas e também suadas.

Girou os olhos pelo quarto, como fazia sempre; examinava o local-cela-quarto-prisão... grades?

No chão entreaberto... Moby Dick – sonhara estar preso no mortal arpão de Ahab;

Baleia, Moby como era chamado – a baleia era branca; ele era a própria noite. ...o zunido... Sempre o zunido daquela miserável... Um dia a pegaria.

Barulho lá fora. Valia a pena sair? Na superfície o Pequod o espreitava. Sentia o seu suor, seu odor de negro fujão; de escravo. “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”, quis cuspir no chão. Achou melhor não. Dane-se o Pessoa. Tão louco que seu duplo era dobrado. Louco de merda. “Pelo menos eu sei quem sou, sei o que faço: Eu sou........... faço.........”

Bobagens. A sombra do Pequod estava quase sobre ele. Piscou os olhos. Mergulhar mais fundo. O mar era seu território, seu universo.

A mulher gritava para que não esquecesse a chave... “A chave! A chave!” e ele em desespero se apalpava. Bolsos do casaco, da camisa, da calça... “A chave! A chave!” “Levante, levante” implorava o cérebro; mas o corpanzil sorria constrangido na sua incapacidade de produzir ação. “Desculpe... respondiam todos os músculos, todos os nervos-neurônios–veias tudo. Todo o organismo em sussurro, depois lamentos depois em berros gritavam-berravam-ganiam-gemiam-murmuravam.

Procurou pelo quarto – sempre o silêncio, abraço profundo; forte e sufocante como o da mãe “Não vá se sujar meu filho... não vá se sujar meu filho...” o perfume adocicado e enjoativo lhe invadindo as narinas e nauseando-o. A tentativa desesperada de fugir dos tentáculos maternos... “Não vá se sujar meu filho...”

Fuga!

Rua!

Corria livre o sorriso fácil riscado na face gordinha e rosada. “Brincar, brincar, brincar” lhe ordenava a alma infantil, e era a mesma alminha que se encolhia tal qual o corpo, assustado e humilhado quando os meninos da vizinhança o colocavam na roda e o chamavam de baleia, “Moby Dick!”, Moby Dick!”

Chorar?

Não. Quando o pai lhe encontrava chorando batia com violência no seu rosto “Home não chora bundão! Home não chora!” E ele, a baleia, engolia as golfadas de lágrimas em proporções desumanas.

Na escola era o centro das atenções; as meninas riam e chamavam-no de Bolo fofo, A baleia sempre fugindo das ameaças. Fundo mergulhava.

E o pai?

Ausência presente. Presente indiferença. Vazio. Poltrona vazia, garrafa vazia. Uma lembrança... Vaga lembrança...

A mãe?

O abraço tentacular tão indiferente quanto à indiferença paterna “não vá se sujar meu filho, não vá.....”

O arpão rasgando o mar. As lágrimas, as lembranças... Ahab. Vários Ahabs insanos em seu encalço.

Afundar...afundar. Cada vez mais afundar.

A mãe-perfume

Perfume-amante.

Chances de amor?

Sim, tivera a chance de ser normal. ( O que é ser normal?) Ela até que gostava do cetáceo, mas não tinha condições de suportar a pilhéria da marujada: “Não dá mais Moby, não dá mais.” “Por que fulana... por quê?

Por quê?

O coro da turba surgia em uníssono vociferando: “Gordo, Gordo!”

Nos ouvidos as mãos, tampões exatos na exatidão da dor.

Chorar?

Não, Moby jamais chorava – o pai não deixava – Moby só mergulhava. Sempre o mergulho. Fugia incessante do arpão, para o arpão...

Ar...

Pra que serve o ar se há a imensa e delirante dor; pra que ar se o arpão da infelicidade lhe atravessa as costas numa gargalhada horrenda.

A cama-mar- acamar- acalmar...

Dor!Dor!Dor!

Ardor e febre. Suor. O corpo se despede enorme. Abandono. Imensa nódoa escarlate que tinge a água e sufoca até Ahab.

Os olhos – longe a baleia, na superfície arrasta para o inferno o navio, a fúria e a intolerância.

Então chegaram calmos, quase sorriam – os carcereiros-enfermeiros-amigos-sombras-marujos...sonhos.

“O gordo foi pro saco.”

“É”

“Pois é.”

O cérebro ativa a última luz...

“Suicídio?”

“Desde que nasceu.” Sorriu o outro.

“É.”

Parados e abertos os olhos. A visão.

Ahab. Dentes arreganhados, toda a tripulação, todos os meninos, a mãe, o pai, a amante – o arpão.

O corpo. Corpanzil de graxa, baleia imensa negra-branco cetáceo. Morte.

Morte?

Sim, por que não, só mais um grande mergulho...

“Ta morto mesmo?”

“Não sei...”

O salto. O berro!

Joga-se! A gordura imensa o peso intenso sobre os olhos claros os olhos parvos, o pânico definido pela indefinível morte.

Sufocados-esmagados-triturados...

Apagada a fornalha fecha-se o livro os olhos fecham.

Mais um mergulho.

Encontrariam no outro dia dois enfermeiros esmagados pelo paciente do quarto 56.

A vida... e a morte também podem ser ridículas.

Não havia nenhum Ismael para escapar ao naufrágio.









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