domingo, 21 de março de 2010

Haiti

HAITI


Ronie Von Rosa Martins





O movimento estava nos olhos. E no dedo. O dedo da mão direita. E o mundo era sobre ele. Com o peso todo. E os olhos vivos. Procurando, buscando. E o cérebro.

Pequeno. Correndo nas ruas. Os amigos juntos. Muita alegria e gritos. Uma bola toda enrolada, chutes para todo o lado. Brincadeiras... Mas agora não dava. Muito peso. E sufocava.

Quando corria muito sentia dor no peito. Tinha que parar, respirar. Mas agora tava difícil. O buraco era pequeno.

Tentava sorrir. Lembrava do gol. Do prazer do chute. Do movimento dos músculos da perna. O retesar, a explosão de força e vigor. Golaço. Bola no ângulo, goleiro estendido. Braços em movimento livre pra cima e para baixo. O grito de gol eclodindo... mas agora não havia gol.

O pescoço doía. Não sentia as pernas. Só os olhos estavam livres. Soltos. Podiam dentro do raio de visão que a cabeça permitia; observar tudo. E nada podiam fazer.

Tentava afastar a lembrança dos rostos. Defesa. Sobrevivência.

Tinha que ser mais forte. Sempre mais forte. Viver. Era isso que tinha que pensar. Mas doía muito.

E os outros? Ouvia rumores. Os ouvidos abalados. Mas ainda ouvia os sons da superfície. Gritara bastante. Ninguém ouvira. Será que morrer era assim?

A luz vinha de um espaço que se abria minúsculo perto do seu pé. Quando fazia sol um facho de luz forte e vibrante incendiava o escuro túmulo onde se encontrava.

E sorria. Nervoso. Fome. Tinha muito. A barriga roncava incessante. Mas era a sede que o enlouquecia. Os lábios secos já começavam a se partir. Rachar. Doíam... e sangravam. E ele bebia o próprio sangue. Um devorar-se aos pouquinhos.

Pensava que era extremamente doloroso estar ciente do próprio definhar do corpo. Queria desmaiar. Fechar os olhos. Mas ai vinha a fúria de viver. Tinha que viver! Tinha. Devia. Resistir ao peso. Resistir.

A vida inteira havia resistido.

O corpo ossudo e magro parecia ser feito de ferro. Agüentara privações que só quem já abraçara a miséria absoluta sabiam. E não havia conforto. Não havia lembranças boas para se agarrar. Pessoas para voltar. Havia um corpo de ferro que se recusava morrer. Só. E mesmo a vida sendo uma merda, era a vida do corpo. A vida que lhe fora dada. E era dele. E era ele que diria que decidiria a hora. E o rato o olhou de longe. Cheirou. E os olhos dele se fecharam. Seria agora. Sentiu no corpo o movimento do animal, unhas afiadas. Abriu a boca. A armadilha. E ele veio. E a boca seca e enorme abocanhou. Dentes de raiva e fome. E mastigou. E bebeu o sangue. E engoliu carne, pele, mastigou osso. Com o desespero e o terror do inferno. E depois da morte sorriu. Cuspindo pelo e bolas de carne e tripas.

Já não sabia quanto tempo. O tempo parecia uma piada. A luz sim era determinante. E quando o pequeno facho se apagava, mergulhava profundamente em um não-ver absoluto.

Foi em um destes escuros que sentir o movimento dolorido da mão. Ela voltava de um torpor antigo. Os dedos mexiam. O braço. O braço estava vivo também. Levantou a mão com esforço até perto dos olhos. Nunca percebera a importância da mão. Uma lágrima escorreu. Ainda não chorara. O sal deslizou de leve por seus olhos. Passou a mão nas lágrimas e lambeu os dedos.

E então os ouviu. Conversas. Palavras estranhas. Passos. Gritos. E o mundo começou a tremer. E terra caiu-lhe no rosto. Cuspiu. E gritou. Grito de raiva. De força. Grito de desespero e ferro. Grito de quem não morre. Berro de corpo que suporta o peso. Uivo da carne que resiste á pedra e ao cimento.

E enquanto era retirado dos escombros gritava. Mas não havia dor. Havia força, havia poder!



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