O VERBO SUPRIMIDO
Foi em um dia normal. Qualquer dia de normalidade próxima ao abismo. Mas normal. Todo o dia é dia. E ponto. E acabou. O dia. No ponto. Exato ponto onde já não é mais dia... então ele parou. Opção pensada. Doença cruel e irremediável. Loucura advinda de genes moralmente abalados de um passado obscuro.
Obscuro era o motivo, a razão da ausência do verbo na boca de Ermiliano Girondino.
O silêncio, tal como demônio que possui corpo abandonado de alma, dominara todos os ecos e vibrações sonoras do corpo de Ermiliano. A língua estava morta. Já não havia sibilações, vibrações... como o demo, o som havia sido excomungado para infernos outros. As cordas já não vibravam nem tiniam.
E assim Ermiliano, vulgo seu Liano, continuava sua vida, agora balizada por um silêncio que era seu, mas que por onde passasse mais silêncio assim somava o dele e o do outro e o daquele que ao não ouvir a voz alheia, cansado de a sua ouvir calava o som exterior e falava no cérebro, pra dentro da cabeça e a voz dormia na língua que já não batia.
Na rua, cumprimentava o povo com os olhos grandes e castanhos, e a intensidade e nuances determinava o humor de seu corpo e espírito.
A mulher, ainda longe da velhice, mas já bem distante da mocidade, nos primeiros tempos chorava e implorava para que ele falasse. Ele sorria. Mexia a cabeça afirmativamente ou negativamente. Afagava carinhosamente o rosto da esposa e dormia sorrindo.
No seu silêncio ela foi. Com a filha e o filho. Taxia na porta. Malas e maletas. Desilusão e lágrima. Ainda na cama Ermiliano dormia. E no seu sono ela ia embora. A família emudecera. Já não havia mais.
Então resolveu que o escritório não era adequado para o seu silêncio. Deitou na cama e fez a grande recusa. Desligou o rádio. A televisão.
Um dia, percebido na ausência que permitira a sua percepção, recebeu a visita de um colega de trabalho.
O outro falou. Falou. Argumentou de todas as formas e maneiras que pôde. Nada conseguiu. No telefone chamou outro amigo, e outro. Em seguida uma emissora de TV local estava no local. Todos falavam. Todos perguntavam. O verbo se enroscava entre as línguas ferinas, libidinosas. O verbo lambia o silêncio de forma imoral. O verbo possuía. Estuprava, violentava. Poluía. Ar, rio, matas e cérebros. O verbo se inscrevia nas árvores e as apodrecia, infiltrava-se nas intenções e tudo deturpava ao seu interesse.
Preso e de olhos esbugalhados diante daquele circo de horrores, Ermiliano pensava em chorar. Pensava em morte, suicídio. Seus olhos tentavam através de códigos vários, nuances infindáveis se comunicar com os outros. Mas ninguém ouvia os olhos de Ermiliano, ouviam só o que diziam. Comiam suas próprias palavras. Alimentavam-se da própria carne.
Fotos. Muitas fotos retratavam Ermiliano. A imagem. A imagem e o verbo infernal. Ambos em prol da representação de Ermiliano Girondino.
Já não era ele. Seu Liano que estava ali. Mas sua representação. Resumido em pequenos textos, consumido em artigos pessimamente elaborados. Retorcido através de uma ótica doentia e perversa. Difamado em letras simplórias que construíam um Ermiliano bufão e engraçado. Um bobo? O verbo recortava o perfil. Definia o psicológico. A imagem, correndo atrás, focava o olho excludente de sua visão parcial nos objetos que poderiam significar algo além do que significavam.
A mulher foi encontrada para dar entrevista, ficara famosa. “A mulher do homem sem voz. A mulher do homem mudo. A mulher do sem voz. A mulher do silêncio.” E agora já não chorava. Falava. Possuída pelo verbo. Proferia frente às câmaras fotográficas e aos gravadores sua triste história junta ao marido.
Rejuvenescera. Comprara roupas novas. De alma vendida. Como prêmio recebera as benesses da mídia. Dinheiro casa e alguns contratos.
Sem o mérito da defesa e ausente de voz verbal, Seu Liano foi colocado em um manicômio. Louco.
No primeiro dia tímido, mas já no segundo começou a grande revolução. Coisa nunca antes vista. Falava com os olhos. E os outros entendiam. E tudo começou a silenciar. Vasto e grandioso. Denso e poderoso. O silêncio começou a tomar conta de todos e de tudo. E o verbo começou a ser esquecido. A palavra abolida.
O manicômio era como um grande “buraco negro” na rua, espaço da anti-matéria, e logo em seguida toda a rua começou a emudecer. As pessoas já não queriam falar. Já não havia interesse. O verbo doía, soava estranho em bocas que se contorciam e gargantas que se espremiam em guturais sentidos.
Passado alguns anos um grande silêncio tomara conta de tudo, e o discurso agora era do silêncio. Os gestos eram mais bem entendidos, as expressões faciais estudadas e interpretadas, tratados sobre as nuances e significados do brilho dos olhos eram escritos.
As proximidades eram mais pretendidas que as distâncias. Então os manicômios perderam sua importância e Ermiliano voltou para casa.
Foi em um dia normal. Qualquer dia de normalidade próxima ao abismo. Mas normal. Todo o dia é dia. E ponto. E acabou. O dia. No ponto. Exato ponto onde já não é mais dia... então ele parou. Opção pensada. Doença cruel e irremediável. Loucura advinda de genes moralmente abalados de um passado obscuro. Obscuro era o motivo, a razão da presença do verbo na boca de Ermiliano Girondino.
Então falou.
Ronie Von Rosa Martins
"...quando precisa inventar novos conceitos para terras desconhecidas, caem os métodos e as morais, e pensar torna-se, como diz Foucault, um "ato arriscado", uma violência que se exerce primeiro sobre si mesmo." (DELEUZE,Gilles. Conversações.p.128)
segunda-feira, 30 de novembro de 2009
domingo, 29 de novembro de 2009
PEDRO
Ronie Von Rosa Martins
Entre as mãos, pressionado pela estrutura física da carne, do osso que sustenta, mas também oprime por também ser obstáculo, peso, parede. Pulsava(?) prisioneiro do próprio corpo engendrado para si. O cérebro.
Nas mãos encharcadas, embebidas no suor das têmporas-nectar das dúvidas e angústias, ele sentia, percebia a aflição de seu intelecto comprimido...
Paredes... tudo eram paredes. Da carne ao tijolo. Tudo que prendia e resumia. Reduzia. Tudo eram paredes. Suas paredes.
Na escuridão circunstancial do não olhar, ele percebia os vultos negros das nuanças da própria sombra que o envolvia e invadia. Possuído pelo demônio da dependência, filho maldito do torpor... atrelado estava à rima simplória, mas vital, da batida cardíaca.
Talvez se abrisse os olhos e enfrentasse além do seu rosto/máscara de carne velha e dissimulada –sua essência, sentido/alma que de tão profunda jamais conhecera. Talvez na pele? Capacidade de se compreender?
Mas o cérebro. Abraçado ao frágil coração gritava-lhe do cárcere onde se encontrava que compreender a si mesmo era coisa de coragem, de desprendimento. E eles eram fracos, débeis na sua condição retórica. Voláteis.
E a umidade das mãos agora ficava mais amarga, pois o fel de sua alma deslisava silenciosamente por sua pele.
Quanto tempo fazia? Quarenta voltas os ponteiros indiferentes da morte já haviam dado ao redor de sua cabeça?
Sair. Levantar.
Tentava sem sucesso tais ordem ao prisioneiro conformado que se distanciava em uma valsa insensata de antigas e novas imagens-reais-ilusórias, de frases ditas e outras nunca mencionadas. Não havia resgate para o encarcerado que se implodia em incoerências. A razão é coerente?
Entre os dedos da mão escorria sua sanidade, fluindo para o esgoto/desgosto? Toda sua capacidade de percepção. Fronteiras ruíam.
E as dias mão que seguravam, agora chacavam-se débeis, delirantes. Surdo aplauso seco. Único. Ploft.
E ser já não era, agora, o que se fora outrora.
Então abriu os olhos. No aço do espelho seus olhos do outro o fitaram. De quem eram aqueles olhos cravados na sua carne. Aquela carne moldada em seu idêntico rosto?
De quem era o organismo tecido em seu espelho?
O que era aquele corpo que na realidade do espelho, na “verdade” do reflexo se escrevia, se inscrevia em seu texto. sem nome e em desalinho?
Na antítese que se instaurava se criara; e na mesma intensidade em que em volume, massa e peso se gerava, também pelo olho - no aço que o encarava – tão simples fácil se rendia. No leito estranho do desespero se permitia outro sono de falácias. Sonhos?
Do outro lado da porta. Sons.
Porta? Lado?
Espalmada a mão na parede fria. Realidade instaurada na solidez do prédio.
A mesma parede que esmaga também protege. O espelho sorriu. A carne ficou indiferente, intacta na ruptura interna da estrutura que se partia.
Qual porta estava fechada? a porta da lúcida madeira? Que se abria de súbito unindo dimensões fantásticas de todos os desatinos.
Estava nu. Desprovido dos panos. Encobrir as vergonhas. Nesta constatação eventual a carne se abriu em gargalhada infindável entre o espaço do aço do espelho e o reflexo da corpo. Carne entre o corpo de espelho e o reflexo do corpo.
Silêncio!
Sérios se olharam – decrépitos ambos.
No ar do olho que se encherga dentro do seu mesmo olho, cicatriza o distante; mesmo que no próximo olho que se vê diante, já se perca no profundo espaço do que já fora antes.
No piscar de ambos que se defrontam o que se alcança são só molduras...
Casado. Não está preso. Casado. Aliança no dedo. Dinheiro eroupa não.
Onde a sombra que se pretende homem? Na escuridão deste apodrecer?
Corpo ereto. Alto. Esguio, curvo. Respira a densidade negra que o emoldura. Pretende um grito. Forte, sacro/santo, mas e voz de onde?
Cadê palavras nessa boca murcha que se costura. Onde atitude nessa massa pálida que se constitui?
Onde a sintaxe da texitura deste verbo que não se estrutura. Dessa frase que não se coaduna. Cadê a palavra que neste deserto subserviente se abandona?
Noolho do teu olho no reflexo do teu despojo, no cérebro preso ao osso que o protege; congelas num segundo o tempo que te engendra; do materno exílio ao parto onde te encontras. Olho no olho no olho do teu próprio olho... Infindavelmente. Nesse espelho que não existe. Deste quarto que não desistes. Neste berro que ecoa.
A mão cansada que no movimento se afoga na densa massa que te engole – escuro – onde tudo se confunde. Vago fundo do teu quarto nu. A chave solta pende morta no fio que a conduz a luz.
E no passo que teu peso grita noutro espaço teu corpo afunda. No além da porta-luz.
Luz que te agride o corpo que reduz.
Pardais cinzentos em bandos te observam através do vidro da parede. No muro que individualiza, singulariza os espaços do mesmo. Delimitam os passos de cada um.
Abertos os vidros que iludem com as imagens das coisas. Respiras a terra.
Tudo é terra.
Vestindo as roupas, vestia também seu nome. Novamente recriado a personagem para o dia. Pedro. Pedra que se submete ao formão e ao martelo do escultor. Ao martelo.
A cada amanhecer recriava-se novamente a entidade Pedro. Vestido como Pedro. Pensando como Pedro, agindo como Pedro. Falando. Só lhe era permitido ser o não-pedro à noite e só. Quando despia-se do rótulo que o algemava ao ícone Pedro. Mas nem isso entendia.
Pedro Salinas. Pedra de sal. Desmanchava na singularidade coletiva de todos. Que também se resumiam.
Em um passo de tempo em que sua forma, imagem e sombra traça, mente, cérebro se afastam. Foge, mas em vão não encontra alma alguma. Corpo e carne e osso que sustenta o vulto já bastam, fartam... então parte.
Mesmo sendo pedra consegue ser mais ausência.
Massa de anti-matéria que perambula pelo universo. De qualquer folha o verso. Não o que canta a dor e a idolatra, mas sim as costas. O resto de qualquer escritura. Sepultura?
Findo o trabalho. Traz sua bunda magra e ossuda para o assento gasto da poltrona que lhe abraça. Engole e consome.
Click. E faz-se a luz. De volta.
O calo.
Não fala.
Nada diz.
Calado retira o sapato.
Na térmica ainda água.
O mate?
Morto. Todos os sonhos.
Sorve toda a amargura.
O calo lateja em sua profunda e singular sintonia.
Retira a meia. Entre o dedinho e o outro. Sem emoção. Com as unhas...
Arrancado, desmembrado o inimigo. Tinge o dedo o sangue, também o pé e o chão.
Vai chover?
Quanto mesmo? Quarenta?
Levanta-se.
É preciso fazer alguma coisa.
Entre as mãos, pressionado pela estrutura física da carne, do osso que sustenta, mas também oprime por também ser obstáculo, peso, parede. Pulsava(?) prisioneiro do próprio corpo engendrado para si. O cérebro.
Nas mãos encharcadas, embebidas no suor das têmporas-nectar das dúvidas e angústias, ele sentia, percebia a aflição de seu intelecto comprimido...
Paredes... tudo eram paredes. Da carne ao tijolo. Tudo que prendia e resumia. Reduzia. Tudo eram paredes. Suas paredes.
Na escuridão circunstancial do não olhar, ele percebia os vultos negros das nuanças da própria sombra que o envolvia e invadia. Possuído pelo demônio da dependência, filho maldito do torpor... atrelado estava à rima simplória, mas vital, da batida cardíaca.
Talvez se abrisse os olhos e enfrentasse além do seu rosto/máscara de carne velha e dissimulada –sua essência, sentido/alma que de tão profunda jamais conhecera. Talvez na pele? Capacidade de se compreender?
Mas o cérebro. Abraçado ao frágil coração gritava-lhe do cárcere onde se encontrava que compreender a si mesmo era coisa de coragem, de desprendimento. E eles eram fracos, débeis na sua condição retórica. Voláteis.
E a umidade das mãos agora ficava mais amarga, pois o fel de sua alma deslisava silenciosamente por sua pele.
Quanto tempo fazia? Quarenta voltas os ponteiros indiferentes da morte já haviam dado ao redor de sua cabeça?
Sair. Levantar.
Tentava sem sucesso tais ordem ao prisioneiro conformado que se distanciava em uma valsa insensata de antigas e novas imagens-reais-ilusórias, de frases ditas e outras nunca mencionadas. Não havia resgate para o encarcerado que se implodia em incoerências. A razão é coerente?
Entre os dedos da mão escorria sua sanidade, fluindo para o esgoto/desgosto? Toda sua capacidade de percepção. Fronteiras ruíam.
E as dias mão que seguravam, agora chacavam-se débeis, delirantes. Surdo aplauso seco. Único. Ploft.
E ser já não era, agora, o que se fora outrora.
Então abriu os olhos. No aço do espelho seus olhos do outro o fitaram. De quem eram aqueles olhos cravados na sua carne. Aquela carne moldada em seu idêntico rosto?
De quem era o organismo tecido em seu espelho?
O que era aquele corpo que na realidade do espelho, na “verdade” do reflexo se escrevia, se inscrevia em seu texto. sem nome e em desalinho?
Na antítese que se instaurava se criara; e na mesma intensidade em que em volume, massa e peso se gerava, também pelo olho - no aço que o encarava – tão simples fácil se rendia. No leito estranho do desespero se permitia outro sono de falácias. Sonhos?
Do outro lado da porta. Sons.
Porta? Lado?
Espalmada a mão na parede fria. Realidade instaurada na solidez do prédio.
A mesma parede que esmaga também protege. O espelho sorriu. A carne ficou indiferente, intacta na ruptura interna da estrutura que se partia.
Qual porta estava fechada? a porta da lúcida madeira? Que se abria de súbito unindo dimensões fantásticas de todos os desatinos.
Estava nu. Desprovido dos panos. Encobrir as vergonhas. Nesta constatação eventual a carne se abriu em gargalhada infindável entre o espaço do aço do espelho e o reflexo da corpo. Carne entre o corpo de espelho e o reflexo do corpo.
Silêncio!
Sérios se olharam – decrépitos ambos.
No ar do olho que se encherga dentro do seu mesmo olho, cicatriza o distante; mesmo que no próximo olho que se vê diante, já se perca no profundo espaço do que já fora antes.
No piscar de ambos que se defrontam o que se alcança são só molduras...
Casado. Não está preso. Casado. Aliança no dedo. Dinheiro eroupa não.
Onde a sombra que se pretende homem? Na escuridão deste apodrecer?
Corpo ereto. Alto. Esguio, curvo. Respira a densidade negra que o emoldura. Pretende um grito. Forte, sacro/santo, mas e voz de onde?
Cadê palavras nessa boca murcha que se costura. Onde atitude nessa massa pálida que se constitui?
Onde a sintaxe da texitura deste verbo que não se estrutura. Dessa frase que não se coaduna. Cadê a palavra que neste deserto subserviente se abandona?
Noolho do teu olho no reflexo do teu despojo, no cérebro preso ao osso que o protege; congelas num segundo o tempo que te engendra; do materno exílio ao parto onde te encontras. Olho no olho no olho do teu próprio olho... Infindavelmente. Nesse espelho que não existe. Deste quarto que não desistes. Neste berro que ecoa.
A mão cansada que no movimento se afoga na densa massa que te engole – escuro – onde tudo se confunde. Vago fundo do teu quarto nu. A chave solta pende morta no fio que a conduz a luz.
E no passo que teu peso grita noutro espaço teu corpo afunda. No além da porta-luz.
Luz que te agride o corpo que reduz.
Pardais cinzentos em bandos te observam através do vidro da parede. No muro que individualiza, singulariza os espaços do mesmo. Delimitam os passos de cada um.
Abertos os vidros que iludem com as imagens das coisas. Respiras a terra.
Tudo é terra.
Vestindo as roupas, vestia também seu nome. Novamente recriado a personagem para o dia. Pedro. Pedra que se submete ao formão e ao martelo do escultor. Ao martelo.
A cada amanhecer recriava-se novamente a entidade Pedro. Vestido como Pedro. Pensando como Pedro, agindo como Pedro. Falando. Só lhe era permitido ser o não-pedro à noite e só. Quando despia-se do rótulo que o algemava ao ícone Pedro. Mas nem isso entendia.
Pedro Salinas. Pedra de sal. Desmanchava na singularidade coletiva de todos. Que também se resumiam.
Em um passo de tempo em que sua forma, imagem e sombra traça, mente, cérebro se afastam. Foge, mas em vão não encontra alma alguma. Corpo e carne e osso que sustenta o vulto já bastam, fartam... então parte.
Mesmo sendo pedra consegue ser mais ausência.
Massa de anti-matéria que perambula pelo universo. De qualquer folha o verso. Não o que canta a dor e a idolatra, mas sim as costas. O resto de qualquer escritura. Sepultura?
Findo o trabalho. Traz sua bunda magra e ossuda para o assento gasto da poltrona que lhe abraça. Engole e consome.
Click. E faz-se a luz. De volta.
O calo.
Não fala.
Nada diz.
Calado retira o sapato.
Na térmica ainda água.
O mate?
Morto. Todos os sonhos.
Sorve toda a amargura.
O calo lateja em sua profunda e singular sintonia.
Retira a meia. Entre o dedinho e o outro. Sem emoção. Com as unhas...
Arrancado, desmembrado o inimigo. Tinge o dedo o sangue, também o pé e o chão.
Vai chover?
Quanto mesmo? Quarenta?
Levanta-se.
É preciso fazer alguma coisa.
COISAS DE SUJEITOS
COISAS DE SUJEITOS
Ronie Von Martins
Querer ser verbo
enquanto se é única e puramente
Artigo...
De indefinida voz
nessa tessitura social
passional.
Onde se travestem de ação
todos os discursos
que não o são.
Onde reverberam
ocultas criaturas
Sujeitos
E sujeitos à interferência
Morfológica
Classificatória
Nomenclatória
Designativa.
Sujeitos e sujeitos
à ambigüidade
turva da opinião!
Sujeitos e sujeitos
à bifurcalidade
dessa língua serpêntica
que se arrasta na própria
incompetência de mais que réptil
Não poder ser.
E neste emaranhado
De inexistentes sujeitos
De indeterminados sujeitos
Sujeitos estamos todos
Aos pontos finalizantes
E às vírgulas segmentadoras.
Ronie Von Martins
Querer ser verbo
enquanto se é única e puramente
Artigo...
De indefinida voz
nessa tessitura social
passional.
Onde se travestem de ação
todos os discursos
que não o são.
Onde reverberam
ocultas criaturas
Sujeitos
E sujeitos à interferência
Morfológica
Classificatória
Nomenclatória
Designativa.
Sujeitos e sujeitos
à ambigüidade
turva da opinião!
Sujeitos e sujeitos
à bifurcalidade
dessa língua serpêntica
que se arrasta na própria
incompetência de mais que réptil
Não poder ser.
E neste emaranhado
De inexistentes sujeitos
De indeterminados sujeitos
Sujeitos estamos todos
Aos pontos finalizantes
E às vírgulas segmentadoras.
ESPREITA
O cigarro já começava a esquentar seus dedos. Gostaria de se incendiar literalmente e acabar com aquilo de uma vez por todas. Esperar. Observar. Conhecer. Já estava cansado. Sua vida nada mais era que pedaços de tantas vidas que observara. Sempre à espreita. Sugando a vida alheia. Os detalhes, a sordidez, as pequenas alegrias, as dores. A traição. Todos traíam. De uma forma ou de outra a raça humana era traidora. E pagavam para ele observar e contar. Relatar os fatos.
Noite. Sentado ao volante do carro lançou a bagana do cigarro pela janela. O pequeno bólido incandescente traçou uma curva no ar e morreu no chão cuspindo algumas fagulhas do antigo brilho. Morte.
Todos queriam ter certeza. Interiormente já a tinham. Todos que o contratavam sabiam. Mas precisavam de provas. “Traga-me a certeza!” então ele saia para as noites. Farejando as humanas falhas, os deslizes, as fraquezas.
Encheu o copo da térmica de café. Bebeu um grande gole. Muito doce. Mas gostava. Gostava das coisas doces...
De dentro da escuridão e do silêncio da rua, o cachorro aproximou-se e urinou na roda do carro. Ele sorriu. Gostaria de ser um cachorro e urinar em alguém. Mostrar que não estava nem aí para nada, recusar um trabalho... mijar no pé de um idiota qualquer.
De súbito voltou suas atenções para a casa. Movimento. Levemente a porta abriu-se, uma sombra masculina parecia beijar um vulto que não saia à porta. Sem o acender das luzes ganhou a rua. Mãos no bolso, cabeça baixa.
Era ele sim. Já tinha fotos e gravações suficientes para comprovar. A mulher estava “frita”.
O marido viajando à negócios e ela ali, aproveitando a vida com o advogado da família.
Tentou sentir alguma coisa em relação ao fato. Nada. Raiva: o homem trabalhando e a vagabunda fazendo aquilo... Nada. Não conseguia sentir nada. O marido podia ser um crápula, podia bater na mulher, e esses escapes era a única forma dela “viver”... Nada. Não conseguia se envolver mais. A vida dos outros começava a acabar para ele. Já não havia nenhum prazer.
Estava morrendo. Se vivia através dos pequenos estratos de vida dos outros, então agora estava morto.
Apanhou a foto da mulher de dentro de um envelope. Mulher bonita, uns trinta e sete anos, olhos tristes e boca sensual. Lembrou do rosto do marido. Homem sisudo e arrogante. Acostumado a mandar. Sobrancelhas espessas e sorriso debochado. Apanhou a foto do advogado. Rapaz jovem e alegre, um olhar que denotava algo de presunçoso... Levantou o rosto para o espelho do carro. Olhou-se. Nada.
No outro dia o marido recebeu um envelope estranho. Um cheiro estranho exalava de dentro. Abriu o envelope enojado e sufocado pelo cheiro. Puxou de dentro algumas fotos e documentos avariados, todos manchados e molhados. Nada podia ser lido ou visto. “Mas o que é isto?” Pensou. Apanhou o telefone. Discou o número que sabia de cor. “O que é isso?” “Nada.” Foi a resposta do outro lado da linha. “Estou saindo.”
“Seu filho da P...” O cheiro começava a empestear a sala. “Que cheiro horrível é esse?”
“Mijo.”
Ronie Von Rosa Martins
Noite. Sentado ao volante do carro lançou a bagana do cigarro pela janela. O pequeno bólido incandescente traçou uma curva no ar e morreu no chão cuspindo algumas fagulhas do antigo brilho. Morte.
Todos queriam ter certeza. Interiormente já a tinham. Todos que o contratavam sabiam. Mas precisavam de provas. “Traga-me a certeza!” então ele saia para as noites. Farejando as humanas falhas, os deslizes, as fraquezas.
Encheu o copo da térmica de café. Bebeu um grande gole. Muito doce. Mas gostava. Gostava das coisas doces...
De dentro da escuridão e do silêncio da rua, o cachorro aproximou-se e urinou na roda do carro. Ele sorriu. Gostaria de ser um cachorro e urinar em alguém. Mostrar que não estava nem aí para nada, recusar um trabalho... mijar no pé de um idiota qualquer.
De súbito voltou suas atenções para a casa. Movimento. Levemente a porta abriu-se, uma sombra masculina parecia beijar um vulto que não saia à porta. Sem o acender das luzes ganhou a rua. Mãos no bolso, cabeça baixa.
Era ele sim. Já tinha fotos e gravações suficientes para comprovar. A mulher estava “frita”.
O marido viajando à negócios e ela ali, aproveitando a vida com o advogado da família.
Tentou sentir alguma coisa em relação ao fato. Nada. Raiva: o homem trabalhando e a vagabunda fazendo aquilo... Nada. Não conseguia sentir nada. O marido podia ser um crápula, podia bater na mulher, e esses escapes era a única forma dela “viver”... Nada. Não conseguia se envolver mais. A vida dos outros começava a acabar para ele. Já não havia nenhum prazer.
Estava morrendo. Se vivia através dos pequenos estratos de vida dos outros, então agora estava morto.
Apanhou a foto da mulher de dentro de um envelope. Mulher bonita, uns trinta e sete anos, olhos tristes e boca sensual. Lembrou do rosto do marido. Homem sisudo e arrogante. Acostumado a mandar. Sobrancelhas espessas e sorriso debochado. Apanhou a foto do advogado. Rapaz jovem e alegre, um olhar que denotava algo de presunçoso... Levantou o rosto para o espelho do carro. Olhou-se. Nada.
No outro dia o marido recebeu um envelope estranho. Um cheiro estranho exalava de dentro. Abriu o envelope enojado e sufocado pelo cheiro. Puxou de dentro algumas fotos e documentos avariados, todos manchados e molhados. Nada podia ser lido ou visto. “Mas o que é isto?” Pensou. Apanhou o telefone. Discou o número que sabia de cor. “O que é isso?” “Nada.” Foi a resposta do outro lado da linha. “Estou saindo.”
“Seu filho da P...” O cheiro começava a empestear a sala. “Que cheiro horrível é esse?”
“Mijo.”
Ronie Von Rosa Martins
MOBY
Abriu um olho-claridade, brilho, luz-piscou uma, duas-três, várias vezes ligou e desligou o mundo. O outro.
Aberta as janelas, fronteiras entre o sono e o despertar, talvez entre a morte e a vida, pensou... (ultimamente pensava demais.)
Precisava levantar- “levanta filho da puta, levanta vagabundo.” – ouvia os quase inaudíveis insultos que o cérebro – entidade funcionário público – gritava. O corpanzil velho gordo e suado lascivamente afundado qual Titanic ou Pequod em um mar de cobertas também velhas e também suadas.
Girou os olhos pelo quarto, como fazia sempre; examinava o local-cela-quarto-prisão... grades?
No chão entreaberto... Moby Dick – sonhara estar preso no mortal arpão de Ahab;
Baleia, Moby como era chamado – a baleia era branca; ele era a própria noite. ...o zunido... Sempre o zunido daquela miserável... Um dia a pegaria.
Barulho lá fora. Valia a pena sair? Na superfície o Pequod o espreitava. Sentia o seu suor, seu odor de negro fujão; de escravo. “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”, quis cuspir no chão. Achou melhor não. Dane-se o Pessoa. Tão louco que seu duplo era dobrado. Louco de merda. “Pelo menos eu sei quem sou, sei o que faço: Eu sou........... faço.........”
Bobagens. A sombra do Pequod estava quase sobre ele. Piscou os olhos. Mergulhar mais fundo. O mar era seu território, seu universo.
A mulher gritava para que não esquecesse a chave... “A chave! A chave!” e ele em desespero se apalpava. Bolsos do casaco, da camisa, da calça... “A chave! A chave!” “Levante, levante” implorava o cérebro; mas o corpanzil sorria constrangido na sua incapacidade de produzir ação. “Desculpe... respondiam todos os músculos, todos os nervos-neurônios–veias tudo. Todo o organismo em sussurro, depois lamentos depois em berros gritavam-berravam-ganiam-gemiam-murmuravam.
Procurou pelo quarto – sempre o silêncio, abraço profundo; forte e sufocante como o da mãe “Não vá se sujar meu filho... não vá se sujar meu filho...” o perfume adocicado e enjoativo lhe invadindo as narinas e nauseando-o. A tentativa desesperada de fugir dos tentáculos maternos... “Não vá se sujar meu filho...”
Fuga!
Rua!
Corria livre o sorriso fácil riscado na face gordinha e rosada. “Brincar, brincar, brincar” lhe ordenava a alma infantil, e era a mesma alminha que se encolhia tal qual o corpo, assustado e humilhado quando os meninos da vizinhança o colocavam na roda e o chamavam de baleia, “Moby Dick!”, Moby Dick!”
Chorar?
Não. Quando o pai lhe encontrava chorando batia com violência no seu rosto “Home não chora bundão! Home não chora!” E ele, a baleia, engolia as golfadas de lágrimas em proporções desumanas.
Na escola era o centro das atenções; as meninas riam e chamavam-no de Bolo fofo, A baleia sempre fugindo das ameaças. Fundo mergulhava.
E o pai?
Ausência presente. Presente indiferença. Vazio. Poltrona vazia, garrafa vazia. Uma lembrança... Vaga lembrança...
A mãe?
O abraço tentacular tão indiferente quanto à indiferença paterna “não vá se sujar meu filho, não vá.....”
O arpão rasgando o mar. As lágrimas, as lembranças... Ahab. Vários Ahabs insanos em seu encalço.
Afundar...afundar. Cada vez mais afundar.
A mãe-perfume
Perfume-amante.
Chances de amor?
Sim, tivera a chance de ser normal. ( O que é ser normal?) Ela até que gostava do cetáceo, mas não tinha condições de suportar a pilhéria da marujada: “Não dá mais Moby, não dá mais.” “Por que fulana... por quê?
Por quê?
O coro da turba surgia em uníssono vociferando: “Gordo, Gordo!”
Nos ouvidos as mãos, tampões exatos na exatidão da dor.
Chorar?
Não, Moby jamais chorava – o pai não deixava – Moby só mergulhava. Sempre o mergulho. Fugia incessante do arpão, para o arpão...
Ar...
Pra que serve o ar se há a imensa e delirante dor; pra que ar se o arpão da infelicidade lhe atravessa as costas numa gargalhada horrenda.
A cama-mar- acamar- acalmar...
Dor!Dor!Dor!
Ardor e febre. Suor. O corpo se despede enorme. Abandono. Imensa nódoa escarlate que tinge a água e sufoca até Ahab.
Os olhos – longe a baleia, na superfície arrasta para o inferno o navio, a fúria e a intolerância.
Então chegaram calmos, quase sorriam – os carcereiros-enfermeiros-amigos-sombras-marujos...sonhos.
“O gordo foi pro saco.”
“É”
“Pois é.”
O cérebro ativa a última luz...
“Suicídio?”
“Desde que nasceu.” Sorriu o outro.
“É.”
Parados e abertos os olhos. A visão.
Ahab. Dentes arreganhados, toda a tripulação, todos os meninos, a mãe, o pai, a amante – o arpão.
O corpo. Corpanzil de graxa, baleia imensa negra-branco cetáceo. Morte.
Morte?
Sim, por que não, só mais um grande mergulho...
“Ta morto mesmo?”
“Não sei...”
O salto. O berro!
Joga-se! A gordura imensa o peso intenso sobre os olhos claros os olhos parvos, o pânico definido pela indefinível morte.
Sufocados-esmagados-triturados...
Apagada a fornalha fecha-se o livro os olhos fecham.
Mais um mergulho.
Encontrariam no outro dia dois enfermeiros esmagados pelo paciente do quarto 56.
A vida... e a morte também podem ser ridículas.
Não havia nenhum Ismael para escapar ao naufrágio.
Ronie Von Rosa Martins
Aberta as janelas, fronteiras entre o sono e o despertar, talvez entre a morte e a vida, pensou... (ultimamente pensava demais.)
Precisava levantar- “levanta filho da puta, levanta vagabundo.” – ouvia os quase inaudíveis insultos que o cérebro – entidade funcionário público – gritava. O corpanzil velho gordo e suado lascivamente afundado qual Titanic ou Pequod em um mar de cobertas também velhas e também suadas.
Girou os olhos pelo quarto, como fazia sempre; examinava o local-cela-quarto-prisão... grades?
No chão entreaberto... Moby Dick – sonhara estar preso no mortal arpão de Ahab;
Baleia, Moby como era chamado – a baleia era branca; ele era a própria noite. ...o zunido... Sempre o zunido daquela miserável... Um dia a pegaria.
Barulho lá fora. Valia a pena sair? Na superfície o Pequod o espreitava. Sentia o seu suor, seu odor de negro fujão; de escravo. “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”, quis cuspir no chão. Achou melhor não. Dane-se o Pessoa. Tão louco que seu duplo era dobrado. Louco de merda. “Pelo menos eu sei quem sou, sei o que faço: Eu sou........... faço.........”
Bobagens. A sombra do Pequod estava quase sobre ele. Piscou os olhos. Mergulhar mais fundo. O mar era seu território, seu universo.
A mulher gritava para que não esquecesse a chave... “A chave! A chave!” e ele em desespero se apalpava. Bolsos do casaco, da camisa, da calça... “A chave! A chave!” “Levante, levante” implorava o cérebro; mas o corpanzil sorria constrangido na sua incapacidade de produzir ação. “Desculpe... respondiam todos os músculos, todos os nervos-neurônios–veias tudo. Todo o organismo em sussurro, depois lamentos depois em berros gritavam-berravam-ganiam-gemiam-murmuravam.
Procurou pelo quarto – sempre o silêncio, abraço profundo; forte e sufocante como o da mãe “Não vá se sujar meu filho... não vá se sujar meu filho...” o perfume adocicado e enjoativo lhe invadindo as narinas e nauseando-o. A tentativa desesperada de fugir dos tentáculos maternos... “Não vá se sujar meu filho...”
Fuga!
Rua!
Corria livre o sorriso fácil riscado na face gordinha e rosada. “Brincar, brincar, brincar” lhe ordenava a alma infantil, e era a mesma alminha que se encolhia tal qual o corpo, assustado e humilhado quando os meninos da vizinhança o colocavam na roda e o chamavam de baleia, “Moby Dick!”, Moby Dick!”
Chorar?
Não. Quando o pai lhe encontrava chorando batia com violência no seu rosto “Home não chora bundão! Home não chora!” E ele, a baleia, engolia as golfadas de lágrimas em proporções desumanas.
Na escola era o centro das atenções; as meninas riam e chamavam-no de Bolo fofo, A baleia sempre fugindo das ameaças. Fundo mergulhava.
E o pai?
Ausência presente. Presente indiferença. Vazio. Poltrona vazia, garrafa vazia. Uma lembrança... Vaga lembrança...
A mãe?
O abraço tentacular tão indiferente quanto à indiferença paterna “não vá se sujar meu filho, não vá.....”
O arpão rasgando o mar. As lágrimas, as lembranças... Ahab. Vários Ahabs insanos em seu encalço.
Afundar...afundar. Cada vez mais afundar.
A mãe-perfume
Perfume-amante.
Chances de amor?
Sim, tivera a chance de ser normal. ( O que é ser normal?) Ela até que gostava do cetáceo, mas não tinha condições de suportar a pilhéria da marujada: “Não dá mais Moby, não dá mais.” “Por que fulana... por quê?
Por quê?
O coro da turba surgia em uníssono vociferando: “Gordo, Gordo!”
Nos ouvidos as mãos, tampões exatos na exatidão da dor.
Chorar?
Não, Moby jamais chorava – o pai não deixava – Moby só mergulhava. Sempre o mergulho. Fugia incessante do arpão, para o arpão...
Ar...
Pra que serve o ar se há a imensa e delirante dor; pra que ar se o arpão da infelicidade lhe atravessa as costas numa gargalhada horrenda.
A cama-mar- acamar- acalmar...
Dor!Dor!Dor!
Ardor e febre. Suor. O corpo se despede enorme. Abandono. Imensa nódoa escarlate que tinge a água e sufoca até Ahab.
Os olhos – longe a baleia, na superfície arrasta para o inferno o navio, a fúria e a intolerância.
Então chegaram calmos, quase sorriam – os carcereiros-enfermeiros-amigos-sombras-marujos...sonhos.
“O gordo foi pro saco.”
“É”
“Pois é.”
O cérebro ativa a última luz...
“Suicídio?”
“Desde que nasceu.” Sorriu o outro.
“É.”
Parados e abertos os olhos. A visão.
Ahab. Dentes arreganhados, toda a tripulação, todos os meninos, a mãe, o pai, a amante – o arpão.
O corpo. Corpanzil de graxa, baleia imensa negra-branco cetáceo. Morte.
Morte?
Sim, por que não, só mais um grande mergulho...
“Ta morto mesmo?”
“Não sei...”
O salto. O berro!
Joga-se! A gordura imensa o peso intenso sobre os olhos claros os olhos parvos, o pânico definido pela indefinível morte.
Sufocados-esmagados-triturados...
Apagada a fornalha fecha-se o livro os olhos fecham.
Mais um mergulho.
Encontrariam no outro dia dois enfermeiros esmagados pelo paciente do quarto 56.
A vida... e a morte também podem ser ridículas.
Não havia nenhum Ismael para escapar ao naufrágio.
Ronie Von Rosa Martins
O SOFÁ
Já não abraçava ninguém. Talvez o tempo. Sim. Com certeza o tempo agora lhe abraçava. Forte. Tão forte que sentia as estruturas do seu corpo fraquejar. Mas não reclamava. Sua resposta era sua insistência. Inquebrantável insistência. Resistir.
Nas espirais em que o tempo fazia suas memórias girarem, algumas lembranças se desgarravam e saltavam na parede. Imagens trans-temporais. Presente e passado, mesclados de forma indefinida.
Dos sonhos. Dos sonos confortáveis. Em que os corpos buscavam os aconchegos de seus sussurros mágicos, de suas cantigas irreais que levava-os para muito além do corpo. Era poderoso e venerado. E tinha seu império na parte mais nobre do reino. E seu poder era ilimitado.
Sobre as disputas de poder. Nos problemas mais graves, os corpos se jogavam para trás, afundavam-se no seu mundo. E com as palavras indizíveis, sussurrava respostas, propunha acordos, fazia rir. Era.
Braços fortes, suportava todos os pesos, todos os tamanhos, todas as alegrias e dores. E era mágico. Sim. Era mágico. Pois fazia as janelas abrirem ou fecharem, acendia quase sempre um portal vibrante e sonoro que hipnotizava todos. E sorria. Era ele.
Mas não há perenidade. Ilusão do eterno.
Primeiro, em decorrência de tratados políticos, condições econômicas e estéticas, fora obrigado, para sua própria segurança a habitar outros espaços. Não era de todo ruim. Agora recebia e tinha de dar palpites em relacionamentos juvenis. Aparar lágrimas infantes perdidas em delírios amorosos. Consolar a imaturidade e acalentar estranhos animais coloridos de pelúcia. Também de bom grado, recolhia todas as roupas e todos os livros. Montanha de coisas caóticas. Mas era forte. E sustentava ainda sorrindo todo o caos daquele estranho ambiente. Nas madrugadas, observando os corpos dormirem, abria sobre seu corpo algum livro ali deixado. Alice no país das maravilhas, o Pequeno Príncipe. Revistas de moda? Signo? Gibi. As vezes ainda ouvia, lá de onde aprendera a estar, os murmúrios do outro. Mais jovem e arrogante que agora dominava. E no sem palavras de seu diálogo, dizia para ser mais generoso menos orgulhoso. A juventude traz na força toda a sua consciência...
Então aconteceu. Enquanto os corpos se ausentavam. O portal luminoso, revoltado com sua subserviência, em ígneo discurso, ateou luz causticante ao lugar. E das distâncias da dor todos podiam assistir a consumação da matéria em brilho e calor intenso.
Quando tudo acabou. Só ele ainda resistia. Corpo ardido, pele em estado deplorável, chamuscado, sujo, mas vivo. Era mágico.
Vários corpos vieram e entre gritos, lágrimas e esforço. Água e suor... restou ele.
Todos foram.
Era a única casa da rua. Hoje é apenas um labirinto de paredes caídas e destruídas.
Porém ele é mágico. E para aqueles que acreditam em mágica e tiverem coragem suficiente. Entrem naquela rua, depois das dez horas da noite, nas pegadas do silêncio, andem até ele. E o verão, em pedaços sim, mas forte o suficiente para acalentar o sono do pequeno menino e seu cão pulguento. Aproximem-se e ouvirão no ar uma voz que é além da voz sussurar: “Era uma vez...”
Ronie Von Rosa Martins
Nas espirais em que o tempo fazia suas memórias girarem, algumas lembranças se desgarravam e saltavam na parede. Imagens trans-temporais. Presente e passado, mesclados de forma indefinida.
Dos sonhos. Dos sonos confortáveis. Em que os corpos buscavam os aconchegos de seus sussurros mágicos, de suas cantigas irreais que levava-os para muito além do corpo. Era poderoso e venerado. E tinha seu império na parte mais nobre do reino. E seu poder era ilimitado.
Sobre as disputas de poder. Nos problemas mais graves, os corpos se jogavam para trás, afundavam-se no seu mundo. E com as palavras indizíveis, sussurrava respostas, propunha acordos, fazia rir. Era.
Braços fortes, suportava todos os pesos, todos os tamanhos, todas as alegrias e dores. E era mágico. Sim. Era mágico. Pois fazia as janelas abrirem ou fecharem, acendia quase sempre um portal vibrante e sonoro que hipnotizava todos. E sorria. Era ele.
Mas não há perenidade. Ilusão do eterno.
Primeiro, em decorrência de tratados políticos, condições econômicas e estéticas, fora obrigado, para sua própria segurança a habitar outros espaços. Não era de todo ruim. Agora recebia e tinha de dar palpites em relacionamentos juvenis. Aparar lágrimas infantes perdidas em delírios amorosos. Consolar a imaturidade e acalentar estranhos animais coloridos de pelúcia. Também de bom grado, recolhia todas as roupas e todos os livros. Montanha de coisas caóticas. Mas era forte. E sustentava ainda sorrindo todo o caos daquele estranho ambiente. Nas madrugadas, observando os corpos dormirem, abria sobre seu corpo algum livro ali deixado. Alice no país das maravilhas, o Pequeno Príncipe. Revistas de moda? Signo? Gibi. As vezes ainda ouvia, lá de onde aprendera a estar, os murmúrios do outro. Mais jovem e arrogante que agora dominava. E no sem palavras de seu diálogo, dizia para ser mais generoso menos orgulhoso. A juventude traz na força toda a sua consciência...
Então aconteceu. Enquanto os corpos se ausentavam. O portal luminoso, revoltado com sua subserviência, em ígneo discurso, ateou luz causticante ao lugar. E das distâncias da dor todos podiam assistir a consumação da matéria em brilho e calor intenso.
Quando tudo acabou. Só ele ainda resistia. Corpo ardido, pele em estado deplorável, chamuscado, sujo, mas vivo. Era mágico.
Vários corpos vieram e entre gritos, lágrimas e esforço. Água e suor... restou ele.
Todos foram.
Era a única casa da rua. Hoje é apenas um labirinto de paredes caídas e destruídas.
Porém ele é mágico. E para aqueles que acreditam em mágica e tiverem coragem suficiente. Entrem naquela rua, depois das dez horas da noite, nas pegadas do silêncio, andem até ele. E o verão, em pedaços sim, mas forte o suficiente para acalentar o sono do pequeno menino e seu cão pulguento. Aproximem-se e ouvirão no ar uma voz que é além da voz sussurar: “Era uma vez...”
Ronie Von Rosa Martins
Assinar:
Postagens (Atom)