segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Barro e palavras



O que busco?
Neste maravilhoso mundo de terrores tantos. Lindos.
Alices e coelhos. Chapeleiros.
O que busco? Neste poço em que me atiro. Lanço, mergulho, me afundo?
O que me busca do fundo deste espaço profundo? Um mundo?
De letras o mundo que me cobre. Cobra que se enrosca em frase e verbo e discurso, e me aperta a garganta e sufoca.
Outro mundo que habito no veneno da serpente que me dilui em letra.
Oração insinuante que entre as pedras de qualquer muro se introduz.
Muro de coisas dadas. Sempre faladas. Muro de lugares comuns.
Busco o murro, neste muro repleto de meu próprio rosto?
Busco o risco neste riso que é o meu e que zomba? De mim?
O que busco nestas páginas que me devoram, que me recobrem, que me configuram?
De Ahab, o grande capitão, a figura? Ou a devastação da baleia, sua fúria?
Talvez a loucura das bicicletas de Flann O’Brien,  a angústia de um Monsieur Teste?
O outro lado de tudo! Não...não!!! Dicotomia, dualismo... não é isso de que morro...ou vivo...
É resistir, como a flor que vence a náusea... do Carlos e o cimento do mundo. Duro mundo cinza derrotado pela feia flor de Drummond.
O que busco? Abraçar-me em Bartleby recitando como um mantra : “preferiria não.” E me colocar neste ponto de total indefinição.
Busco um café com Palomar. Discutir o mundo e observar as ondas do mar  e aprenderia “como estar morto”. Busco isso. Não a morte, mas o encontro com a intensidade. Observar Calvino e Becket discorrer sobre o fim... Palomar e Malone.
Neste espaço que se faz nos interstícios de toda palavra, toda letra, toda frase, toda oração... Gastar um tempo esperando Godot. Humano, falho, assustado. Bobo.
Busco a crueldade do teatro do Artaud. Glossolalias, palavras sopradas com ar e sangue. Busco o ritual dos Taraumaras. Mágica, mágica, mágica!
Na profundidade da pele de qualquer palavra, busco os olhos do gato de Derrida e o animal em mim.Que já não sou.   
Aqui, de onde a palavra exata já não mais comanda, busco a ruptura mesmo da palavra, a sua deformação. Neologismo de Joice, e seu indecifrável Ulisses, o “Nonada” do Gimarães Rosa. Do chão, no mínimo detalhe, busco a grandeza do nada na Gramática de Manoel. E do barro de tudo isso me recriar. Me re-nascer como a palavra E... e...
Golen de barro, que se rebela contra seu criador, criatura de terra. Fertilizado de palavras e sentidos. E morrer em mim mesmo... Sendo tantos outros. Meu verbo em barro, “minha substancia ainda informe.”




PALAVRA QUE FALTA





E era a palavra. A que faltava. Não a que se esperava. Previsível. Normal. A de sempre. Nem a inventada sob forma  e fornalha. Quente. Agredida e medida, escrava e escavada em árido terreno. Brilho efêmero e calculável.
Era aquela outra. Da boca de um povo que ainda não era. Ainda não pronunciada. Uma palavra por vir. Mais de força que de regras. Mais de potência que de gramática. Palavra a-gramatical capaz de zombar e agredir a mãe de todas as línguas. A senhora exata. A palavra rebelde. Revolta. Tantas e tantas voltas. E sempre a diferença surgindo. Voltas e retornos não mais os mesmos. Não iguais, não mais o mesmo.
Uma palavra-arpão nas costas de uma enfurecida Moby-Dick... Carregando todos para a densidade da tragédia, para os limites, para além de qualquer borda. Palavra de olhos vermelhos surgindo. Louca como um Artaud. Soprando sua gramática. Nova. Arpão no coração da norma. Da única forma. "I would prefer not to." de um Bartleby.
Negar o verbo fácil. Resistir à pura interpretação. Talvez uma palavra venenosa. Perigosa. Como aquelas produzidas por Jorge de Burgos na obra de Umberto Eco. Não mais para calar o leitor, não mais para esconder, mas sim para levar o leitor a outra dimensão da palavra. Outro espaço perigoso e arriscado, mas possível!
Ou valises. Palavras-valises. Como as de Carroll ou de Joyce.  “Guerreando a vida inteira quanto à contransmagnificandjudeibunbatancialidade.” E o mundo para. Para na palavra-entranha. Não estranha. Mas nas entranhas da palavra. Palavra movediça, lamacenta, disforme. A-moral. Palavra sibilante, sísmica.
Artaud: O que em mim chamam o homem/ é minha vida e é isto que me é impossível de abandonar,/ mas eu mudarei/meu esqueleto,/meu cérebro,/ meus pulmões,/ meu coração,/ meu fígado,/ minhas nádegas,/ meus intestinos, minha coluna vertebral/ e meu sexo./eu guardarei minha aparência externa com modificações.”
Artaud. Em luta com o corpo. Com a palavra que se constitui corpo. Corpo definido e organizado da palavra.
Eis a palavra que falta. A palavra desnuda de toda vergonha moral, social, histórica. “Gostaria  de eleger palavras que sejam, para começar, nuas, simplesmente, palavras do coração.” Palavras ditas com Derrida ao perceber o olho do animal que o observa. Nu. Palavras que surgem de um devir-animal. De um devir-gato derridiano. Desconstruir a palavra. Derrida. Atingir um grau zero da escrita. Barthes.
“Parece muito habilidoso para explicar palavras, Sir”, disse Alice. “Faria a gentileza de me dizer o significado do poema chamado ‘Pargarávio.’?”[1]




[1] CARROL, Lewis. Alice, Edição Comentada. p.205

domingo, 24 de setembro de 2017

Sobre páginas e corpos






24/09/2017


As palavras haviam sumido. Da boca sua. Da folha nua. Branca e imoral.
Oco. O mundo de criar. De criar mundo, morto. Já não era deus. Nem nada.  Era só... o só.
Sozinho entre o desperdício de energia e a incompletude de frases.
Uma bomba. Pensava em uma bomba. Arrebentar com o silêncio do branco, grudar-se em Moby Dick até a derradeira morte. Trágica, literária e épica.
Mas não. Era simples e fraco e bobo e sem talento. Suficientemente sem talento. E as palavras eram fracas. Débeis. E morriam todas. Enterradas em ideias inférteis. Confetes  no carnaval simplório do lugar comum.
Então o chimarrão. Quente.  Garganta à dentro. Vapor escaldante pelos olhos vermelhos. Dor de cabeça e a impossibilidade do whisky. Sem álcool sem Bukowski,  Fitzgerald, Nelson Rodrigues... Sem nada. Só a nudez doentia da folha. Nada comparado com  “A pornografia” do Gombrowicz. Palidez literária. Nudez cadavérica de qualquer mais profunda fantasia.
E como ser um escritor de tal corpo. Nu.  Cru. Insensível aos grandes arroubos de vida e morte? Como ser um escritor daquilo que não é trágico?
Como escrever a vida em corpo que se abandona a morte?
Amarrar no corpo, um sopro de qualquer palavra...e lançar no fogo. Um grito!
Um rito! Abraçar o corpo morto e valsar na borda do abismo infinito. Com uma perna só. No vento. E se lançar na garganta da serpente. De repente. Devorado pela palavra medo e suas formas todas de fazer tremer. Perder.
Perder o corpo branco e nu. Por entre as tintas de dor e cor e flor e odor. Tingir a página carne, a carne pálida-papel de berro e grito. De fúria, de indignação.
Cuspir na folha branca todos os verbos doentios que adoecem o lugar comum. O bom senso. A tradição do corpo branco. Da página-folha-nua-morta.
E então no branco um ponto final. Não o comum, mas aquele que perfura o corpo atravessa a página, rasga a unidade do nada e  propicia um fresta para loucura. Um buraco vivo na folha morta.