quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

PIRULITOS E VELHOS




Era  um fusca. Branco. Antigo. Dentro ela. Jovem. Bonita. Simpática. Na rua ele. Bicicleta e suor. Fone no ouvido. Música encharcando corpo e espírito. Corpo e espírito no corpo musical do momento. Um olhar. Simples e curto. Distante e tão incrivelmente perto.  E os carros, e as pessoas, e o tempo sem dó. Dor. E o nunca mais. E o para sempre.
O agora é diferente. Velho e sem bicicleta. Reivindicação dos joelhos. Das costas e do sem brilho dos olhos seus.  Agora sem fone nos ouvidos. Já não ouvia nada. O som era o da imagem. Inventava sons para o que via. E era o banco da praça. Sempre ali. Fugir sempre da casa. Ser velho exigia esse esforço. Para o bem de todos. Dele mesmo.
As bicicletas passavam. E ele ficava, mas ia também. Girava no cérebro, os pedais e o esforço. E lembrava do vento na cara. E o suor. Do coração batendo forte... pôs a mão no coração para sentir. Nada. Não sentia muita coisa.
O menino chupando um pirulito sentou ao lado. Olhos grandes de entender os velhos. "você tá triste?" Foi a pergunta. Os olhos de já não entender as crianças se voltaram pro menino. "Não." A criança levantou-se, tirou um pirulito do bolso e entregou. Correu para apagar sua imagem dos olhos antigos. Foi-se. Na mão o doce. Os olhos vetustos e a rua que ia e voltava sempre.
A senhora com bolsas passou e sorriu. O pirulito era cômico... ou trágico. E ele ainda não sabia o que fazer. Drama ou comédia? Não gostava muito de comédias, mas já estava velho demais para  dramas. Para o drama é necessário um coração vigoroso e cheio de sentimentos. Seco era o dele. Antigo.
Do outro lado da rua um casal discutia. O drama. Jovens perdidos em intensidades. Belo e estranho. Percebia-se a atração. Gesticulavam furiosos, mas pediam tudo um do outro. Amor? O que seria o amor. Ela fazia menção de ir. Ele segura-a do braço, moderava o tom da voz, suplicava. Ela chorava. Lágrimas e dizia palavras que a rua engolia. Se abraçavam. O beijo. Os corpos juntos. Vibração. E iam também. Mão ligadas, sorrisos envergonhados e felizes. Mais uma vez voltavam. Quantas vezes ele os vira ali. Discutindo e voltando? Várias.
Seria aquele o lugar ideal para resolverem seus problemas amorosos. Haveria um lugar adequado? Não sorriu. 
Uma leve brisa soprou algumas folhas caídas. Giraram no ar. Bailado contemporâneo e pós-moderno. Bailarinas bêbadas e alucinadas. Frenéticas. E caíram. Todas juntas. Mortas novamente. As folhas. E ele. Pensava que nunca aprendera a dançar. Acompanhar o ritmo de uma música. A potência de uma coreografia, ritual de acasalamento e namoro. Sempre fora difícil. Dançar era movimentar o corpo, vulneralizar-se para as forças inusitadas da música. E ele era pedra. Sempre fora. Duro. Tentara algumas vezes. Mas era um desastre. Parou. E ali estava.
O joelho doía. Sempre doía. E as costas.
E o pirulito doce. E um certo constrangimento. A infância parecia querer fazer troça de sua mão gelada e enrugada. Jogar fora? Não parecia certo. Esperar outra criança? Não seria confundido com esses miseráveis assediadores de menores? Jogar fora. Afinal ela já não havia ido? A infância?
Era colorido. E os olhos antigos e secos observavam. O colorido do doce. Seria o menino um anjo ou um demônio? As crianças sempre eram os  dois. Anjos e demônios. Ele fora. Medonho quando pequeno. Correr na rua. Jogar taco com os amigos. Bolinha de gude. Queria esboçar um sorriso. Mas não. A boca estava selada para esses prazeres. E nem a memória conseguia desenferrujar aquela porta antiga.

E então ele viu novamente. Não era o fusca de quarenta anos atrás. Era uma cadeira de rodas. Uma senhora grisalha empurrava outra um tanto mais velha. Rosto fechado. Olhos apertados pela claridade do sol. Triste. As duas. Mãe e filha. A filha e o fardo. O fardo e a filha. Ela sabia. Ser empurrada. Direcionada. A cadeira. Mesmo com rodas era uma limitação. "Tudo bem mãe?" A voz da filha. E a rua em silencio parecia conspirar para que ele ouvisse tudo. Ou nada. A outra mulher não respondeu. Triste. Mas os olhos se encontraram. Breve instante. Segundo. Nele um estremecimento. Algo estranhamente arrepiante. E rapidamente ele enfiou o pirulito na boca. Plástico e tudo. A cena congelou. Segundos, e o silêncio foi rompido pela gargalhada solta e desesperada da mulher. Em seguida ele se precipitou a rir também, com todas as suas rugas e dores. Estavam vivos pensou. E continuava a rir enquanto ouvia ao longe as gargalhadas da mulher na cadeira de rodas. Estavam vivos!