Era um fusca. Branco. Antigo. Dentro ela. Jovem.
Bonita. Simpática. Na rua ele. Bicicleta e suor. Fone no ouvido. Música
encharcando corpo e espírito. Corpo e espírito no corpo musical do momento. Um
olhar. Simples e curto. Distante e tão incrivelmente perto. E os carros, e as pessoas, e o tempo sem dó.
Dor. E o nunca mais. E o para sempre.
O agora é diferente.
Velho e sem bicicleta. Reivindicação dos joelhos. Das costas e do sem brilho
dos olhos seus. Agora sem fone nos
ouvidos. Já não ouvia nada. O som era o da imagem. Inventava sons para o que
via. E era o banco da praça. Sempre ali. Fugir sempre da casa. Ser velho exigia
esse esforço. Para o bem de todos. Dele mesmo.
As bicicletas passavam.
E ele ficava, mas ia também. Girava no cérebro, os pedais e o esforço. E
lembrava do vento na cara. E o suor. Do coração batendo forte... pôs a mão no
coração para sentir. Nada. Não sentia muita coisa.
O menino chupando um
pirulito sentou ao lado. Olhos grandes de entender os velhos. "você tá triste?"
Foi a pergunta. Os olhos de já não entender as crianças se voltaram pro menino.
"Não." A criança levantou-se, tirou um pirulito do bolso e entregou.
Correu para apagar sua imagem dos olhos antigos. Foi-se. Na mão o doce. Os
olhos vetustos e a rua que ia e voltava sempre.
A senhora com bolsas
passou e sorriu. O pirulito era cômico... ou trágico. E ele ainda não sabia o
que fazer. Drama ou comédia? Não gostava muito de comédias, mas já estava velho
demais para dramas. Para o drama é necessário
um coração vigoroso e cheio de sentimentos. Seco era o dele. Antigo.
Do outro lado da rua um
casal discutia. O drama. Jovens perdidos em intensidades. Belo e estranho.
Percebia-se a atração. Gesticulavam furiosos, mas pediam tudo um do outro.
Amor? O que seria o amor. Ela fazia menção de ir. Ele segura-a do braço,
moderava o tom da voz, suplicava. Ela chorava. Lágrimas e dizia palavras que a
rua engolia. Se abraçavam. O beijo. Os corpos juntos. Vibração. E iam também.
Mão ligadas, sorrisos envergonhados e felizes. Mais uma vez voltavam. Quantas
vezes ele os vira ali. Discutindo e voltando? Várias.
Seria aquele o lugar
ideal para resolverem seus problemas amorosos. Haveria um lugar adequado? Não
sorriu.
Uma leve brisa soprou
algumas folhas caídas. Giraram no ar. Bailado contemporâneo e pós-moderno.
Bailarinas bêbadas e alucinadas. Frenéticas. E caíram. Todas juntas. Mortas
novamente. As folhas. E ele. Pensava que nunca aprendera a dançar. Acompanhar o
ritmo de uma música. A potência de uma coreografia, ritual de acasalamento e
namoro. Sempre fora difícil. Dançar era movimentar o corpo, vulneralizar-se
para as forças inusitadas da música. E ele era pedra. Sempre fora. Duro.
Tentara algumas vezes. Mas era um desastre. Parou. E ali estava.
O joelho doía. Sempre
doía. E as costas.
E o pirulito doce. E um
certo constrangimento. A infância parecia querer fazer troça de sua mão gelada
e enrugada. Jogar fora? Não parecia certo. Esperar outra criança? Não seria
confundido com esses miseráveis assediadores de menores? Jogar fora. Afinal ela
já não havia ido? A infância?
Era colorido. E os
olhos antigos e secos observavam. O colorido do doce. Seria o menino um anjo ou
um demônio? As crianças sempre eram os
dois. Anjos e demônios. Ele fora. Medonho quando pequeno. Correr na rua.
Jogar taco com os amigos. Bolinha de gude. Queria esboçar um sorriso. Mas não.
A boca estava selada para esses prazeres. E nem a memória conseguia
desenferrujar aquela porta antiga.
E então ele viu
novamente. Não era o fusca de quarenta anos atrás. Era uma cadeira de rodas.
Uma senhora grisalha empurrava outra um tanto mais velha. Rosto fechado. Olhos
apertados pela claridade do sol. Triste. As duas. Mãe e filha. A filha e o
fardo. O fardo e a filha. Ela sabia. Ser empurrada. Direcionada. A cadeira. Mesmo
com rodas era uma limitação. "Tudo bem mãe?" A voz da filha. E a rua
em silencio parecia conspirar para que ele ouvisse tudo. Ou nada. A outra
mulher não respondeu. Triste. Mas os olhos se encontraram. Breve instante.
Segundo. Nele um estremecimento. Algo estranhamente arrepiante. E rapidamente
ele enfiou o pirulito na boca. Plástico e tudo. A cena congelou. Segundos, e o
silêncio foi rompido pela gargalhada solta e desesperada da mulher. Em seguida
ele se precipitou a rir também, com todas as suas rugas e dores. Estavam vivos
pensou. E continuava a rir enquanto ouvia ao longe as gargalhadas da mulher na
cadeira de rodas. Estavam vivos!